Aí estou eu, com cinco ou seis anos de idade, ouvindo Beatles. O compacto na "eletrola" é "I Want to Hold Your Hand", edição original da Odeon. O fato de eu ser filho temporão fez com que as músicas que meus irmãos ouviam na adolescência acabassem fazendo parte também da minha infância. E eu testemunhei a Beatlemania no Brasil. Lembro, por exemplo, da estreia do filme "Help!" nos cinemas de Porto Alegre. As garotas gritavam "Ringoooo". Os nomes dos Beatles eu aprendi quando a revista Intervalo publicou fotos individuais de cada um. George Harrison era chamado de "Jorge Árrisson", pronúncia que alguns fãs mais antigos ainda utilizam. No meu aniversário de cinco anos, ganhei o compacto "I Call Your Name"/"Long Tall Sally" de um tio meu. A partir dos seis anos, troquei os discos de música pelos de histórias infantis. Lembro bem da minha vó dizendo: "agora ele está ouvindo os discos certos para a idade dele". E parei de acompanhar os Beatles. O máximo que lembro de ter feito foi assistir ao desenho animado "Submarino Amarelo" no Cinema Rex. Achei confuso demais para minha cabeça de infante e as músicas não me chamaram a atenção. Os Beatles tinham mudado. Eu, ainda não.
Até que, aos dez anos, fui à minha primeira "reunião dançante". Foi um momento decisivo. Ali a música entrou de volta na minha vida com toda a força e não saiu nunca mais. Mas só dois anos depois é que iniciei minha redescoberta dos Beatles. A Globo exibiu "Help!" quando a TV a cores ainda era novidade no Brasil (meu pai ainda não tinha, mas meu irmão, sim) e o LP voltou às paradas, sumindo das lojas. Aos poucos, com o dinheiro de minha mesada (e alguns presentes), fui começando minha coleção. A cada disco que eu comprava, ficava curioso para saber se reconheceria alguma música de minha infância. Curiosamente, de "Beatles '65", lembrei imediatamente de "I'll Follow The Sun", mas não das outras. É estranho que muitos clássicos dos Beatles eu só vim a conhecer a posteriori, embora tenha vivido a época.
Mesmo reconhecendo a grandiosidade de alguns trabalhos da "segunda fase" dos Beatles, em especial "Revolver" e "Sgt. Pepper's", ainda prefiro as músicas do começo. Por serem as da minha infância, claro, mas também porque foi com aqueles petardos simples e urgentes que esses quatro provincianos da Inglaterra vieram patrolando de Liverpool para o mundo. "I Want to Hold Your Hand" é a nascente de quase tudo o que aconteceu depois no rock, do punk ao heavy metal. Até então, rock era, acima de tudo, ritmo. A partir dos acordes iniciais que antecederam o "oh yeah I'll... tell you something", rock passou a ser força, energia, peso.
Os Beatles já estavam separados quando me tornei realmente Beatlemaníaco. Logo, era natural que eu me interessasse também pela carreira-solo de cada um deles. Até hoje, tenho um vínculo afetivo com os discos de John Lennon. Mas o compacto "My Love"/"The Mess", de Paul McCartney, foi marcante para mim. Logo depois um amigo da turma comprou o LP "Band on The Run" e assim nasceu a era de Paul McCartney e Wings. Mas, para os fãs brasileiros, houve uma injusta penalização.
Quando Paul estava para lançar o álbum "Venus and Mars", a imprensa brasileira informou que o disco talvez não saísse no Brasil. Motivo: o ex-Beatle estava pedindo um dólar a mais por cada cópia vendida em nosso território. Em efeito cascata, isso dobrava o preço do disco. No fim, não só "Venus and Mars" mas todos os LPs de Paul, lançados antes ou depois, passaram a custar duas vezes o preço de um disco normal. Imaginem a pequena fortuna que os fãs brasileiros tiveram que desembolsar pelo triplo "Wings Over America". O dinheiro da minha mesada não podia ser desperdiçado assim. Às vezes eu arriscava perguntar o preço de um disco de Paul em lojas menos destacadas do centro de Porto Alegre. Se a resposta fosse o valor normal, eu aproveitava para comprar. Mas só deu certo duas vezes: com "London Town" e a coletânea "Wings Greatest".
O surgimento do CD zerou o placar e recomecei minhas coleções. Agora, sim, Paul McCartney entrou para ficar no meu acervo. Também o mercado de vídeo trouxe para perto os shows que ele fazia pelo mundo. Desde a turnê "Flowers in The Dirt", em 1989, Paul passou a incluir farto material de Beatles em seus shows. E, embora os shows dos Beatles tenham valor histórico inestimável (feliz de quem pôde vê-los), uma apresentação solo de Paul supera a ex-banda em qualidade musical. A produção é sofisticada, a duração é cerca de três horas (mal comparando, os Beatles tocavam 25 minutos) e inclui as canções da fase sofisticada dos anos 60, que o antigo grupo não chegou a apresentar ao vivo. Enfim, hoje, Paul McCartney é os Beatles, herdeiro legítimo do legado musical do conjunto.
No domingo, Porto Alegre viverá um dia histórico, como a passagem do Graf Zeppelin, a enchente de 41 e a chegada do Papa. E aquele garotinho da foto aí de cima estará lá para testemunhar. Vem de lá, MACCAnudo!