Paul Stanley era o único dos quatro integrantes originais do
Kiss que ainda não havia publicado sua autobiografia. Em
"Face the Music – a Life Exposed", o "Garoto Estrela" do grupo mostra-se o mais sensato e bem resolvido de todos. É ele mesmo quem
narra a gravação do audiobook, com excelente dicção. Pela primeira vez ele se
abre sobre o trauma de infância que enfrentou em razão de uma doença congênita
chamada microtia. Em outras palavras, o bebê Stanley Einsen (seu verdadeiro
nome) nasceu surdo do ouvido direito e sem a respectiva orelha. E teve que
suportar a zombaria das outras crianças no colégio, que o chamavam de
"Stanley, o mostro de uma orelha só". A moda dos cabelos compridos o
ajudou a esconder a deformidade, mas não lhe curou do complexo. Quando o Kiss
adotou cabelos mais curtos em 1981, Paul usou um lenço ao redor da cabeça. Até
que, algum tempo depois, seu terapeuta lhe indicou um cirurgião que poderia
reconstruir sua orelha a partir de cartilagem removida da caixa torácica. E
assim, com mais de 30 anos, Paul livrou-se da anomalia que tanto o atormentara.
As críticas que ele faz ao comportamento errático dos
"bad boys" Ace Frehley e Peter Criss, os membros originais que acabaram
saindo, não devem surpreender os fãs mais atentos. Já se ouviram muitas
histórias de que Ace era preguiçoso no começo da carreira, recusando-se a
carregar equipamento, e que depois as drogas o tornaram instável e
indisciplinado. Tampouco é novidade que Peter tinha limitações como baterista e
também veio a se detonar com substâncias ilegais. Justiça se faça, Paul até
reconhece os momentos em que Peter se mostrava uma boa companhia, como quando
foi vê-lo na apresentação da peça "O Fantasma da Ópera", em que o
guitarrista viveu o papel principal em 1998 e 99 (e se identificou com a
deformidade facial do personagem). Também concede que Ace Frehley, o
"Spaceman" da guitarra solo, "tinha talento para ser tão bom
quanto pensava que era". E acrescenta: "O potencial estava ali para
que ele se tornasse um dos maiores de todos os tempos. Mas a bebida, o Valium,
a coca e o que mais fosse lhe deixavam incapacitado quase o tempo todo".
O que surpreende é que nem o fiel Gene Simmons é poupado das
farpas! Ele e Paul fizeram parte de todas as formações do Kiss e comandam o
grupo. As afinidades são muitas: ambos judeus, os dois com infâncias
problemáticas, apaixonados por mulheres e rock and roll. O sucesso funcionou
para eles como uma catarse. Mas Paul não perdoa o caráter egocêntrico do
colega. Afirma que Gene dizia "eu" nas entrevistas em situações que o
certo seria "nós". Não deixa barato o período nos anos 80 em que o
baixista parecia mais preocupado com seus filmes do que com os discos da banda.
Acusa-o de usar o logotipo e a imagem do Kiss em projetos pessoais. Por fim,
tenta desfazer o mito de que Gene seria o maior responsável pelos negócios do
conjunto, enquanto Paul ficava com a parte musical. "Ele não era nenhum
gênio de marketing. Ele apenas assumia o crédito pelas coisas. (...)
Estrategista calculado? Com certeza. Gênio? Não."
Um boato que de tempos em tempos mexe com a curiosidade dos
fãs é sobre a sexualidade de Paul. Já houve insinuações em livros e entrevistas
maldosas de fãs. O músico não aborda os rumores diretamente, mas aproveita duas
passagens para deixar claro de que lado ele está. Ele comenta que Neil Bogart,
da gravadora Casablanca, sugeriu que ele mudasse a maquiagem, porque a máscara
da estrela solitária era muito "afeminada". E argumenta: "Eu tinha
orgulho de ser o Starchild e não via
como o que eu fazia podia ter qualquer ligação com minha sexualidade, ou como
era percebida. (...) Neil estava certo sobre como meu personagem poderia ser
interpretado. Só que eu não me importava." Mas o recado inequívoco aparece
quando ele comenta o texto de apresentação que redigiu para a capa do álbum Alive!: "... escrevi minha nota sem
torná-la específica para um gênero. (...) Eu considerava um elogio ser atraente
para qualquer um e para todos, ser procurado e imitado pelas pessoas
independente de gênero ou orientação sexual. Nunca senti que fosse uma ameaça a
meu senso de masculinidade ou identidade. Se eu fosse gay, certamente não seria
algo que eu iria esconder ou de que teria vergonha, mas não sou." E termina
o capítulo respectivo com uma historinha. Uma fã lhe falou em plena cama:
"Meu namorado disse que você é gay." E Paul respondeu a ela que não
adiantou, pois não a impediu de se aproximar dele.
Talvez por vir de uma família perturbada, com pais que tinham
dificuldade de entendê-lo e uma irmã com problemas mentais, Paul ansiava por um
lar. Belas mulheres não lhe faltavam: enquanto garotos colecionavam pôsteres de
revistas masculinas, o músico levava as próprias modelos para sua alcova. Seu
primeiro relacionamento mais significativo foi com a atriz Donna Dixon. O
romance acabou de forma turbulenta, mas o guitarrista não desistiu de sua
busca. Disposto a se casar, acabou elegendo Pam Bowen, outra atriz, para ser
sua esposa. Da união nasceu seu primeiro filho Evan. Mas a moça não parecia
valorizar as atitudes românticas do marido. Chegava a colocar defeitos nos
presentes caros que recebia. Não podia dar certo. Foi na advogada Erin Sutton
que Paul encontrou a companheira ideal. Com ela, Paul teve mais um menino e
duas garotas. Hoje ele curte a vida familiar, cozinhando e cuidando do jardim
na companhia dos filhos.
Sobre a morte do baterista Eric Carr, Paul dá sua versão.
Ele diz que ficou surpreso com a animosidade que existia para com ele e Gene no
velório. "Aconteceu que Eric nos tinha pintado como vilões – ele disse que
nós o chutamos da banda e não lhe demos apoio, o que não era verdade."
Como explicou um pouco antes, a intenção era apenas dar ao músico tempo e
tranquilidade para que se recuperasse do câncer. Mas finalmente conclui:
"Foi um erro afastar Eric do que ele mais amava, do que era para ele uma
corda de salvação. KISS." No último capítulo, Paul diz que o grupo poderá prosseguir sem
ele em algum momento: "...eu não sou imortal - a banda é." Mais adiante: "As causas continuam. Os partidos políticos
continuam sem seus fundadores. Eu acho que pode surgir alguém que poderá
carregar a bandeira tão bem quanto ou até melhor – alguém que possa construir
sobre a fundação. Eu aguardo o dia em que serei substituído no Kiss. Não porque
eu queira sair, mas porque isso irá provar que eu estou certo: o Kiss é maior do que qualquer de seus
membros."
(Para ler meu comentário sobre a autobiografia de Peter Criss, clique aqui.)
-*-
Ao mesmo tempo em que o livro de Paul Stanley chega às
livrarias americanas, o Kiss vive um momento duplamente histórico: finalmente entram
para o Rock and Roll Hall of Fame. No embalo do evento, outro tabu é superado:
em 40 anos de carreira, a banda pela primeira vez adorna a capa da Rolling
Stone americana. Sempre existiu um preconceito muito forte contra o grupo junto
aos críticos mais xiitas, que não reconheciam a legitimidade do Kiss como banda
de rock. A maquiagem e o merchandising (merendeiras, bonecos, jogos, máquinas
de fliperama, etc.) pareciam conspirar contra a imagem do quarteto. Pois desta
vez não só os quatro membros originais aparecem na fachada da revista, como são
também entrevistados. Gene ainda não havia lido a autobiografia de Paul, mas
confirmou todas as críticas que o jornalista lhe transmitiu,
numa espécie de "acareação". "Culpado da acusação", era o
que o baixista repetia a cada alegação. A matéria pode ser lida aqui.