Outra Autobiografia entrou em pré-venda ainda antes do falecimento de Rita Lee, no dia 8, mas saiu apenas hoje. Um título mais adequado deveria explicitar que se trata, na verdade, de um relato do tratamento da cantora a partir do momento em que soube que estava com câncer. É um volume pequeno, com 179 páginas em sua edição impressa, incluindo 39 capítulos curtinhos, mais o Epílogo.
Ao tomar conhecimento de sua enfermidade, Rita lembrou do calvário enfrentado por sua mãe, que sofria do mesmo mal, e manifestou seu desejo de tomar logo o "chazinho da meia-noite" e receber morfina para "fazer uma passagem digna, sem dor, rápida e consciente". Mas o médico lhe falou sobre os avanços da medicina e, atendendo à vontade do marido e dos filhos, ela decidiu lutar. A narrativa não tem nada de melodramática, pelo contrário: é marcada o tempo todo pelo humor característico da roqueira. Ao falar do momento em que teve que usar fralda descartável para conter uma diarreia, ela diz: "Nesse estágio, a gente esquece a finesse, o noblesse oblige, e mija, caga e peida até na frente da rainha da Inglaterra".
Sabendo do final que a história teria, é impossível não atentar para as observações de Rita sobre a morte. Ela toca no assunto com tranquilidade e afirma que queria "ser cremada e ter as cinzas jogadas em minha horta caseira sem agrotóxicos para me transformar numa alface suculenta". Mas uma passagem deixa claro que ela não pretendia partir tão cedo: "Rob [Roberto de Carvalho] e eu temos músicas inéditas na manga para lançar a qualquer momento. Enfim, basta essa praga de vírus baixar a bola para que os Lee/Carvalho entrem em cena tipo Exterminadores do Baixo Astral. We'll be back!"
Todo o processo se desenrolou durante a pandemia, então o coronavírus é uma espécie de personagem secundário do livro. Rita não perde a chance de alfinetar o então presidente, "aquele maldito Bozo desdenhando e ignorando os que trabalham na linha de frente da saúde". Como amplamente divulgado pela imprensa na época, ela relembra que batizou o maior de todos os quistos cancerígenos encontrados em seu corpo de "Jair".
Duas colegas de Rita faleceram durante o período, então ela dedica um capítulo para cada uma, rememorando os contatos que teve com Elza Soares e Gal Costa. Outro trecho marcante é a visita feita por ela à exposição em sua homenagem no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo. Ela compareceu numa segunda-feira, em que o local não estava aberto ao público, para evitar riscos de contaminação. Diz-se "lisonjeada" de ter sabido ser a artista brasileira com mais músicas censuradas no tempo da ditadura. "Eu crente que fosse Chico Buarque".
O livro conta com relativa minúcia as partes mais complicadas do tratamento. As crises de pânico, a imunoterapia, radioterapia e por fim a químio. E todos os seus efeitos colaterais, dos quais a perda do cabelo é apenas o mais conhecido. Mas também fala do amor de Rita pelos animais, pelos filhos e pelo marido, o reconhecimento e gratidão pela dedicação de enfermeiras e terapeutas. Infelizmente, ela não viveu para ver este título lançado, nem para realizar os outros sonhos que deixou registrados. Fica este testemunho como último legado aos fãs.