O livro final de Rita Lee
Ao tomar conhecimento de sua enfermidade, Rita lembrou do calvário enfrentado por sua mãe, que sofria do mesmo mal, e manifestou seu desejo de tomar logo o "chazinho da meia-noite" e receber morfina para "fazer uma passagem digna, sem dor, rápida e consciente". Mas o médico lhe falou sobre os avanços da medicina e, atendendo à vontade do marido e dos filhos, ela decidiu lutar. A narrativa não tem nada de melodramática, pelo contrário: é marcada o tempo todo pelo humor característico da roqueira. Ao falar do momento em que teve que usar fralda descartável para conter uma diarreia, ela diz: "Nesse estágio, a gente esquece a finesse, o noblesse oblige, e mija, caga e peida até na frente da rainha da Inglaterra".
Sabendo do final que a história teria, é impossível não atentar para as observações de Rita sobre a morte. Ela toca no assunto com tranquilidade e afirma que queria "ser cremada e ter as cinzas jogadas em minha horta caseira sem agrotóxicos para me transformar numa alface suculenta". Mas uma passagem deixa claro que ela não pretendia partir tão cedo: "Rob [Roberto de Carvalho] e eu temos músicas inéditas na manga para lançar a qualquer momento. Enfim, basta essa praga de vírus baixar a bola para que os Lee/Carvalho entrem em cena tipo Exterminadores do Baixo Astral. We'll be back!"
Todo o processo se desenrolou durante a pandemia, então o coronavírus é uma espécie de personagem secundário do livro. Rita não perde a chance de alfinetar o então presidente, "aquele maldito Bozo desdenhando e ignorando os que trabalham na linha de frente da saúde". Como amplamente divulgado pela imprensa na época, ela relembra que batizou o maior de todos os quistos cancerígenos encontrados em seu corpo de "Jair".
Duas colegas de Rita faleceram durante o período, então ela dedica um capítulo para cada uma, rememorando os contatos que teve com Elza Soares e Gal Costa. Outro trecho marcante é a visita feita por ela à exposição em sua homenagem no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo. Ela compareceu numa segunda-feira, em que o local não estava aberto ao público, para evitar riscos de contaminação. Diz-se "lisonjeada" de ter sabido ser a artista brasileira com mais músicas censuradas no tempo da ditadura. "Eu crente que fosse Chico Buarque".
O livro conta com relativa minúcia as partes mais complicadas do tratamento. As crises de pânico, a imunoterapia, radioterapia e por fim a químio. E todos os seus efeitos colaterais, dos quais a perda do cabelo é apenas o mais conhecido. Mas também fala do amor de Rita pelos animais, pelos filhos e pelo marido, o reconhecimento e gratidão pela dedicação de enfermeiras e terapeutas. Infelizmente, ela não viveu para ver este título lançado, nem para realizar os outros sonhos que deixou registrados. Fica este testemunho como último legado aos fãs.
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