No dia 16 de maio de 1976, o Jornal do Brasil publicou um texto do crítico de música Tárik de Souza anunciando o festival "Sol, Som, Surf", que se realizaria em Saquarema - RJ. A inspiração, obviamente, era Woodstock, mas com o plus do campeonato de surfe para dar um toque de litoral brasileiro. Depois deveriam sair um disco, um filme e até um livro. O festival aconteceu, mas os registros de som e imagem, embora devidamente feitos, foram engavetados. Somente 40 anos depois é que as películas em 16mm foram processadas e, tanto quanto possível, restauradas. Alguns trechos estão em péssimo estado de conservação, mas mantêm seu valor histórico. Esse material finalmente aparece no documentário "Som, Sol e Surf Saquarema", que o Canal Curta exibiu no dia 11 de fevereiro. E um dos entrevistados é justamente Tárik de Souza.
Confrontando-se a sequência de imagens com a cobertura feita por Nélson Motta (que produziu o festival) para o Globo, publicada em 27 de maio de 1976, percebe-se que a edição tomou algumas liberdades com a ordem dos fatos. A primeira a aparecer é Ângela Ro Ro, na época uma estreante em plena fase blueseira e roqueira, cantando "My Girl" (do repertório de Otis Redding), "Wild Thing" (Troggs), "Like a Rolling Stone" (Bob Dylan) e "Minha Mãezinha", de sua autoria. Ângela foi na verdade a segunda a se apresentar, mas acabou entrando primeiro no documentário. As cores variam e desbotam, além de aparecerem pequenas sujeiras na película. Mas não importa, que bom que essas imagens foram resgatadas.
O cantor que abriu o festival acabou ficando em segundo lugar no filme: Ronaldo Resedá, outro novato que viria a estourar mais adiante fora do rock and roll. Se Ângela Ro Ro seguiu o caminho da MPB, Ronaldo surfaria a onda da discoteca com sucessos em novela, como "Kitsch Zona Sul" (em "Dancin' Days", 1978) e o tema de "Marrom Glacê" (1979). Aqui ele aparece com pique de roqueiro, cantando "Fé Cega, Faca Amolada", de Milton Nascimento, com base no arranjo dos Doces Bárbaros, e "Be Bop a Lula", de Gene Vincent. Ronaldo, infelizmente, faleceu em 1984, mas Ângela está muito viva e contribui com um depoimento.
Apenas na metade de "Som, Sol e Surf Saquarema" é que entra o relato de Nélson Motta relembrando o temporal que obrigou ao cancelamento dos shows daquela noite (outra semelhança com Woodstock...). O que não ficou claro, pelo menos para mim, é que isso aconteceu no primeiro dia, 21 de maio, antes que qualquer apresentação tivesse sido feita. É o que diz Nélson em sua cobertura para o Globo em 1976. Esse dado é importante, pois deve ter causado receio de que o evento todo fosse literalmente por água abaixo. Mas os shows programados para a sexta-feira foram juntados com os de sábado e, no fim, deu tudo certo.
Para os fãs de rock gaúcho, o registro do Bixo da Seda é simplesmente precioso. Foi naquele ano que saiu o único LP do grupo, mas o repertório de Fughetti, Mimi e Marcos Lessa, Edinho Espíndola e Renato Ladeira já estava plenamente renovado. Não se ouve uma só composição do disco, somente inéditas como "Rockinho" (que seria gravada pelo Taranatiriça em 1984 e se tornaria o hino do rock gaúcho dos anos 80), "Chegou o Inverno Voltou" (uma linda balada), "Dona Ieda" (clássico de Cláudio Vera Cruz e Paulinho Buffara que só não entrou no disco porque foi censurada) e, rodando durante os créditos finais, "I am Stoned, My Friend". O que faz pensar: se recuperaram os filmes, onde estão as fitas gravadas por Don Lewis, Mike e Peninha Schmidt? Por que não lançar um CD?
Além do Bixo, que tinha reconhecimento nacional como uma das legítimas bandas de rock brasileiro dos anos 70, o festival teve a participação dos outros três nomes lendários da década: Raul Seixas, Made in Brazil e Rita Lee. O show do Made é o que parece estar com a imagem mais bem preservada, em especial nas cores. Mas é nesse momento que surge um erro gritante na tela: o vocalista Percy é creditado como Celso Vecchione, que era (e ainda é) o guitarrista do grupo. Aparece também o cantor Flávio Spirito Santo, tanto na época como atualmente, lembrando que foi ele quem convenceu Nélson Motta a realizar o festival.
São raros os momentos do documentário em que as imagens de época têm relação com os depoimentos atuais. Em geral os trechos de palco se alternam com as novas entrevistas, para dar um tom equilibrado à edição. Além dos já citados, contribuem com suas lembranças, entre outros, o então prefeito de Saquarema, Jurandir da Silva, Liminha, Lobão, Oswaldo Vecchione, surfistas, organizadores e pessoas que vieram para assistir ao evento. A parte do campeonato de surf também é mostrada, bem como a montagem do palco e incidentes gerais, como o incêndio de uma Kombi de lanches. Por fim, fica-se sabendo como os rolos de filme 16mm foram localizados e restaurados.
Além da sugestão já feita do CD, esse documentário merecia lançamento em DVD e Blu-ray, incluindo a íntegra dos filmes restaurados nos extras. Parabéns aos envolvidos pelo resgate histórico, antes tarde do que nunca.