Na última sexta-feira, o Canal Brasil exibiu o quarto e derradeiro episódio do documentário "Primavera nos Dentes", sobre os Secos e Molhados. A direção e o roteiro foram do jornalista Miguel de Almeida, autor da biografia do grupo, já comentada aqui. A produção começa prejudicada pelo fato de que o líder e principal compositor da banda, João Ricardo, não autorizou o uso de suas músicas. Ele nunca colabora com reportagens ou similares porque não concorda com as versões que normalmente se apresentam. A solução encontrada pelos músicos participantes foi fazer do limão uma limonada e criar temas instrumentais inéditos inspirados no estilo do conjunto. O baixista Willy Verdaguer compôs "Outono", "O Passeio", "Solaris" e "Cósmica". O tecladista Emílio Carrera assinou "Galope" e "Aurora". Ambos eram músicos de apoio dos Secos e Molhados na fase clássica (1973-74).
A grande surpresa, guardada para o último episódio, foi a gravação da composição inédita "Ouvindo o Silêncio", com música de Gérson Conrad e letra de Paulinho Mendonça. Ambos já tiveram diversas parcerias, entre elas "Delírio", do segundo LP dos Secos e Molhados. Paulinho também é coautor de "Sangue Latino", do primeiro disco, com João Ricardo. A ideia era apresentar o que poderia ser uma nova música do grupo, com Ney Matogrosso no vocal, Gérson na segunda voz, Emílio nos teclados, Willy no baixo - até aqui, todos participantes dos dois primeiros LPs dos Secos e Molhados -, mais André Perine nas guitarra e violas e Gabriel Martini na bateria. O resultado ficou interessante, mas não necessariamente resgatou a sonoridade clássica que se esperaria.
Com isso, as cenas de arquivo dos Secos e Molhados perdem muito de seu valor por não poderem ser mostradas com o áudio original, no caso de execução de músicas. Ouvem-se apenas as duas composições que não tiveram participação de João Ricardo, no caso, "Rosa de Hiroshima", de Gérson sobre poema de Vinicius de Moraes, e a já citada "Delírio". Esta abre o primeiro capítulo em versão instrumental (a base sem os vocais) enquanto se vê o grupo no camarim, aplicando a maquiagem tradicional.
Uma crítica pertinente que muitos já fizeram à edição é inclusão de imagens de arquivo não diretamente vinculadas à história do grupo. Aparecem cenas do tempo da ditadura nos anos 1970, com som distorcido e movimento reverso para dar uma conotação negativa. Também entram vários trechos da peça "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade, numa tentativa de associar a maquiagem do ator Renato Borghi à adotada pelo grupo. São elementos visuais interessantes, mas supérfluos. Também é questionável o depoimento de artistas que não eram nem nascidos na época dos Secos e Molhados ou de músicos que acompanharam o grupo apenas à distância, como observadores e fãs.*
O ponto forte do documentário, como seria de se esperar, são os testemunhos dos protagonistas. Ney Matogrosso e Gérson Conrad contam várias passagens da história do grupo, muitas vezes juntos no mesmo ambiente, de forma que um pode corroborar ou complementar a versão do outro. Paulinho Mendonça também tem diversas falas, bem como o fotógrafo Antônio Carlos Rodrigues, que fez a capa do primeiro LP, o empresário Moracy do Val e seu sucessor Henrique Suster, que pegou o grupo na reta final, já em vias de se separar.
Um erro que não deve ter escapado aos fãs mais atentos é que Totô Braxil, cantor dos Secos e Molhados em 1988 (LP A Volta do Gato Preto), foi mostrado como se fosse Lili Rodrigues, da formação de 1978 (do sucesso "Quem fim levaram todas as flores"). Já a lenda de que o Kiss copiou a maquiagem dos Secos e Molhados não pode ser ignorada, pois já se tornou parte do folclore em torno do grupo. Mas é curioso que ela ainda persista, pois foi desmentida de forma definitiva pela biografia de Ney, escrita por Julio Maria (e por este Blog também, mas é claro que o livro sempre terá mais credibilidade). Até mesmo Gérson a endossou, embora tivesse admitido que não passa de um equívoco em vídeo recente do YouTube. E, no documentário, ainda mencionou ter visto o Kiss na capa de uma revista "Rolling Stones" (sic) em 1974. Com certeza um engano, pois o quarteto americano só adornou a fachada da Rolling Stone pela primeira vez em 2014. O boicote à banda de Gene Simmons e Paul Stanley era quase uma questão de honra para o editor Jann Wenner.
Nenhuma surpresa que tenham sobrado algumas críticas à postura de João Ricardo. A recusa do criador dos Secos e Molhados em colaborar com a produção propicia e até incentiva esses comentários. Mas, sem ele, ouve-se apenas um lado da história. Recomenda-se assistir à série de vídeos "Ouvido Nu", que o compositor postou no YouTube, para saber a versão dele. Também seria interessante que a produção da Interface Filmes lançada em 2021 no festival In-Edit Brasil fosse disponibilizada em streaming, pois ali temos um longo depoimento de João Ricardo contando a história do grupo.
Enfim, "Primavera nos Dentes" é um ótimo documentário, mas merecia uma edição mais enxuta, focando apenas nos testemunhos relevantes.
*Aqui, talvez alguns lembrem que, em 2018, eu apareci no Canal Brasil falando sobre os Secos e Molhados e apontem um "telhado de vidro". Mas ali o objetivo era outro. A série "MPB 73 - o Ano da Reinvenção" teve como ponto de partida o livro "1973, o Ano que Reinventou a MPB". A ideia era de que todos os autores que haviam participado da obra dessem seus depoimentos. Como eu escrevi sobre o primeiro LP dos Secos e Molhados, fui escalado para falar sobre eles.