Já comentei aqui algumas vezes que o brasileiro não sabe ser voto vencido. Que, numa verdadeira democracia, deveríamos simplesmente votar, respeitar o resultado da eleição e seguir em paz. Pois recentemente escutei a versão em audiobook (ou audiolivro, como preferem alguns) de "Democracia em Crise no Brasil", de Cláudio Pereira de Souza Neto, e transcrevo abaixo trechos que considerei certeiros:
Em uma democracia constitucional, os adversários se concebem mutuamente como dignos de respeito e consideração, apesar das divergências que mantêm entre si. A crise atual da democracia envolve a dissolução das relações de "amizade cívica" entre adversários, que passam a se conceber como "inimigos". (...) Nas disputas políticas que têm lugar em contextos de erosão democrática, os opositores são taxados como "traidores", "subversivos" ou "criminosos". (...) Quando os "inimigos" vencem as eleições, as derrotas eleitorais tendem a não ser reconhecidas, e se legitima o emprego de meios não democráticos para retirá-los do poder.
Perfeito! O mais incrível é que o livro foi escrito bem antes da arruaça antidemocrática protagonizada pelos maus perdedores em Brasília em 8 de janeiro. Duas perguntas me ocorrem. Primeira: o Brasil de fato teve, em algum momento, a democracia constitucional pacífica e ordeira que o autor descreve no começo do trecho que transcrevi? Minha lembrança é de que o clima político era mais ameno e civilizado no governo Fernando Henrique e no primeiro mandato de Lula. Sim, inevitavelmente se lia ou ouvia "fora FHC" e depois "fora Lula". Mas as posições não estavam tão à flor da pele como hoje. As redes sociais catalisaram as divergências e o "vem pra rua" criou (ou tentou criar) a falsa ideia de que é lícito buscar reverter nas praças o que já foi decidido nas urnas. Uma das consequências foi a de que amigos que conseguiam conviver com suas diferenças partidárias passaram a ver suas amizades arranhadas ou mesmo desfeitas.
A segunda pergunta: é possível sanar essa erosão democrática e retornar a uma normalidade? O momento atual é o pior possível para se pensar nisso, pois os baderneiros estão sendo julgados, o que acirra ainda mais a polarização entre eleitores. Mas eu ainda sonho com um Brasil em que a democracia seja exercida com maturidade e civilidade.