terça-feira, fevereiro 15, 2022
Eu nunca acompanhei com afinco o trabalho de Arnaldo Jabor, nem mesmo como cineasta. Mas, no momento em que recebemos a notícia de seu falecimento, tenho duas contribuições para dar. Uma é uma curta entrevista que ele concedeu ao RBS Revista em 1986 que aí está. A outra, infelizmente, diz respeito a uma das principais "brigas" deste Blog: os textos apócrifos. Jabor era uma das maiores vítimas dessa praga ao lado de Luis Fernando Verissimo e Mario Quintana. Inexplicavelmente, sempre que aparece algum texto exaltando os gaúchos, começa a circular com a assinatura de Arnaldo Jabor. Ele próprio se manifestou a respeito, certa vez:
E não publicam só textos safadinhos, mas até coisas épicas, como uma esplendorosa "Ode aos Gaúchos" que eu teria escrito, o que já me valeu abraços apertados de machos bigodudos em Porto Alegre, quebrando-me os ossos: "Tchê, tua escritura estava macanuda , tri-legal!" Eu nego ter escrito aquele ditirambo meio farroupilha aos bigodudos, mas nego num tom vago, para não ser esculachado: "Tu não escreveste? Então tu não amas nossas "prendas" lindas, e negas ter escrito aquele pedaço em que tu dizes "que a gente já nasce montado num bagual"? Aquilo fez meu pai chorar, e o pedaço em que falas que "por baixo do poncho também bate um coração?" Tu tá tirando o cu da reta, tchê?"- e me aponta o dedo, de bombachas e faca de prata. "Não fui eu não, mas...viva o Olívio Dutra!..."
Já tem gaúcho no Facebook homenageando Jabor com um desses textos que ele próprio disse que não escreveu. E seguido dos tradicionais comentários: "Só podia ser do Jabor!" Se alguém afirma que não é dele, sempre tem um desmemoriado para contestar: "É dele, sim, eu lembro quando foi publicado e ele leu na TV uma vez!" Enfim, a Internet criou um universo paralelo. Espero que a grande imprensa do Rio Grande do Sul aproveite o gancho para pelo menos tentar esclarecer de uma vez por todas que ele jamais redigiu esses elogios aos gaúchos.
sábado, fevereiro 12, 2022
E por falar em Quintana...
Já ouvi dizer que a natureza é sábia, mas não imaginava o quanto! Nesta imagem capturada em 2019 pelo Google Street View, as folhas tentam cobrir um texto indevidamente atribuído a Mario Quintana. Estão fazendo a parte delas. Infelizmente, continua lá, pois acabou de ser postado em uma comunidade de fotos de Porto Alegre do Facebook. É na Rua Goytacaz, Vila Assunção.
quinta-feira, fevereiro 10, 2022
A verdade sobre Quintana e o Hotel Majestic
Talvez vocês já tenham lido ou pelo menos ouvido falar de um texto que conta uma suposta "expulsão" de Mario Quintana do Hotel Majestic, em Porto Alegre. Que teria acontecido de forma grosseira num momento em que o poeta gaúcho estaria na miséria, sem poder pagar sua hospedagem. E que o jogador Paulo Roberto Falcão o teria literalmente resgatado da sarjeta e oferecido a Quintana um quarto no Hotel Royal, de sua propriedade. Gratuitamente e "por toda a eternidade". Trata-se de uma narração fantasiosa e, mais do que isso, caluniosa, pois atribui a Quintana uma penúria que nunca experimentou e aos empregados do hotel uma rispidez que jamais tiveram. Sim, Falcão de fato concedeu o uso de seu hotel ao poeta. Mas não da forma que a crônica descreve.
Pensei em escrever algo a respeito quando essa bomba estourou no Facebook em 2020, mas concluí que não seria necessário. O músico e pesquisador Henrique Mann, que era amigo de Quintana e musicou vários de seus poemas, redigiu um brilhante desmentido que foi publicado no Blog do Juca Kfouri. O site GZH também fez uma matéria esclarecendo a verdade. A Casa de Cultura Mario Quintana se manifestou a respeito no Facebook. (Apenas uma ressalva: o "Poeminho do Contra" foi publicado em 1973 no livro "Caderno H", ou talvez antes na coluna homônima que Quintana tinha no Correio do Povo, e não tem nada a ver com as três rejeições do nome do poeta para a Academia Brasileira de Letras, que aconteceram bem depois, entre 1981 e 1982. É mais uma "lenda" a ser combatida.)
Já era de se imaginar que os desmentidos não fossem totalmente eficazes. Nunca são. Mas não se poderia esperar o que aconteceu recentemente: o texto mentiroso ressurgiu com toda a força, como uma incômoda fênix. Ele foi postado novamente no dia 28 de janeiro. Vejam a imagem acima: na data de hoje, já tinha nada menos do que 2.800 compartilhamentos! O tom melodramático da escrita mexe com a emoção dos Internautas, que se comovem com a atitude de Falcão contrastando com o alegado desprezo do Hotel Majestic a um grande poeta. E alguns, com a memória deficiente, deixam-se sugestionar pelo conto e afirmam "lembrar" que isso realmente aconteceu! A ajuda de Falcão, sim, foi real. Mas o restante da crônica é um festival de inverdades.
Longe de mim acreditar que conseguirei acabar de uma vez por todas com essa viralização de calúnias. Bem que eu quereria. Como bem observou um amigo do Facebook, é como tentar apagar incêndio com copo d'água. Mas gostaria de dar uma contribuição mostrando matérias que saíram na imprensa nas respectivas épocas em que Quintana mudou de endereço. Vamos lá.
Trecho do Jornal do Brasil de 24 de junho de 1980. Sim, Quintana teve que desocupar seu quarto do Hotel Majestic, mas não por falta de pagamento. O prédio havia sido comprado pelo Banrisul e as 70 pessoas que residiam no hotel tiveram que desocupá-lo. Não houve a truculência aludida no texto que se prolifera furiosamente pelo Facebook. Nem qualquer intervenção por parte de Falcão, pelo menos não nesse momento. Quintana mudou-se para o Hotel Presidente.
Novamente o Jornal do Brasil, desta vez em 19 de dezembro de 1983. Três anos e meio depois de deixar o Majestic, Quintana enfrenta o mesmo revés no Hotel Presidente. Observem que a ação de despejo foi contra o hotel, não especificamente Quintana, que inclusive já vislumbrava uma nova opção para sua morada.
Correio Braziliense de 20 de dezembro de 1983. Agora, sim, Falcão entra em cena oferecendo seu hotel a Mario Quintana, uma atitude louvável e merecedora de todos os elogios. Mas notem que isso acontece três anos e meio depois da saída do poeta do Hotel Majestic.
Por fim, em matéria do Correio Braziliense de 15 de junho de 1986, fica-se sabendo que, "no começo do mês", Quintana mudou-se para o Porto Alegre Residence Hotel. Dessa vez a troca aconteceu por opção do poeta, que considerava o apartamento do Royal "muito pequeno, um estojo, e não me considero joia para ser guardado". E no Residence ele permaneceu até o momento do seu "repouso" (termo que usou em seu poema "O Mapa") em 1994. Que fique bem claro:
- Quintana nunca esteve na miséria.
- O Hotel Majestic não expulsou grosseiramente Quintana. Ele foi uma das 70 pessoas que tiveram que desocupar seus quartos porque o estabelecimento estava sendo desativado.
- Algo semelhante aconteceu no Hotel Presidente. Foi aí que Falcão ofereceu um quarto em seu hotel, onde Quintana ficou do final de 1983 até meados de 1986.
- Esse texto que circula furiosamente pelo Facebook é mentiroso e calunioso. Não deve ser compartilhado. Quem o compartilhou, deve excluí-lo
Não bastasse a luta contra os textos indevidamente atribuídos a Quintana (leiam "Os Falsos Quintanas"), agora temos que combater distorções à biografia do poeta. Mas não esmoreçamos.