Sem noção
Há muitos anos, levei o Iuri ainda pequeno em um Pediatra que atendia em Canasvieiras. Enquanto a enfermeira cadastrava meus dados, vi um casal chegar com um nenê de colo pedindo que o médico fosse chamado na sala de espera. Eles queriam que o doutor desse uma olhada na criança "pra ver se precisava consultar". Ou seja, faltava-lhes vivência para entender que uma das finalidades da consulta é constatar ou não alguma doença e não apenas medicar. Se não houvesse nada, o dinheiro gasto valeria pela tranqüilidade – que foi exatamente o caso do meu filho. Mas não, eles queriam uma pré-consulta gratuita. O médico educadamente explicou: "ou ele consulta, ou ele não consulta". Acabou não consultando. O casal deve estar até hoje indignado com a "má vontade" do doutor.
Certa vez, fiz um curso de extensão em Análise de Sistemas em que a bibliografia era quase toda em inglês. Isso incomodava meus colegas, que não tinham bom domínio do idioma. Mas eles se safavam. Prestavam atenção nas aulas e iam bem nas provas. Mesmo assim, um dia uma professora disse que iria distribuir um material em inglês e um colega, com quem não quer nada, perguntou: "Não dava pra você traduzir pra nós antes de entregar?" Hoje a comunidade de tradutores do Orkut é regularmente invadida por gente pedindo traduções gratuitas. E ficam ofendidíssimos se não são atendidos!
Recentemente uma colega da comunidade "A Noviça Rebelde" me escreveu dizendo que estava preparando uma apresentação baseada no filme e queria que eu lhe enviasse "todas" as músicas para que escolhesse as melhores. Ora, como alguém se propõe a um projeto desses sem ter no mínimo a trilha sonora já ouvida e disponível? Por sorte achei um link onde alguém já havia postado as músicas em MP3 e o indiquei, do contrário eu teria que dizer: quem sabe você não prefere que eu lhe mande o meu CD de presente?
Um dia um colega de faculdade me contou que pediu a um vendedor de loja de discos raros que trouxesse de casa um determinado LP que ele queria olhar. E ficou revoltado porque a resposta – óbvia, diga-se de passagem – foi: "E eu vou trazer só pra você olhar?" Eu incluiria nessa turma aqueles para quem você não pode dizer que tem nada, que já querem emprestado. Enfim, é uma questão cultural. Em geral o comentário que esse pessoal suscita é o de que estão bancando os espertos. Mas eu acho que não. A maioria é "sem noção", mesmo. Fazer o quê?
P.S.: Aos que estão chegando aqui via Tecla SAP (valeu o link, Ulisses!), indico também os seguintes textos, que têm a ver com inglês ou linguagem:
A palavra que falta
Duas carnes
Eufemismos
Get a life
Inversão de valores
Objetividade verbal
Professores de inglês na berlinda
Regras para confundir
Transmitindo informações
7 Comments:
Concordo quanto à irritação dos tradutores ao pedirem para fazer traduções de graça e da consulta médica, mas não concordo com alguns outros exemplos que você mencionou, como pedir os MP3 para um amigo ou pedir um LP para ouvir.
É verdade...
algumass pessoas não se mancam.
Só acho triste porque o profissional que aceita esse tipo de 'oferta' desvaloriza a si e a sua classe.
Cheguei por tecla SAP e virei telespectadora. Que bom te ler, cara!
Cheguei por tecla SAP e virei telespectadora. Que bom te ler, cara!
Obrigado, Sara. Volte sempre.
Emílio, aqui no Ceará a gente tem uma expressão bem menos educada pra dizer isso: "fingir de morto pra comer o coveiro"...rs São muito comuns, tanto o experto como o sem noção. Como todo bom cearense, se a pessoa for "amiga" eu finjo que levo na gozação e digo "mamar na vaca, vc não quer não?" Outra expressão nossa, muito antiga. Se não tenho intimidade, digo apenas q estou com muito trabalho e não tenho tempo etc. Mas de graça... não.
Boas! Aqui em Sampa eu conheci uma expressão mais educada, "fazer-se de burro para comer milho".
Um e-abraço,
Ayrton
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