terça-feira, fevereiro 07, 2006

Eufemismos

Acho que foi o tradutor Danilo Nogueira quem certa vez chamou a atenção para o fato de que, em português, chamamos de "contribuinte" o que em inglês se diz "pagador de impostos" (taxpayer). Desde então, comecei a observar como os eufemismos fazem parte da nossa cultura. Certos termos ou expressões são tabu e costumam ser trocados por equivalentes mais brandos. "Contribuinte" ameniza a idéia de coerção e reforça o benefício que se espera de um imposto. Assim também, diz-se que um imposto "incide" sobre determinado pagamento ou atividade. Em inglês ele é "imposto" (particípio do verbo impor), mesmo, o que faz com que alguns tradutores menos experientes traduzam "tax imposed" como "imposto imposto". O verbo "incidir" é mais bonito e transforma o que deveria ser objeto em sujeito. Ou seja, não é a autoridade que cobra o imposto sobre algo, é o imposto que incide. É como se ele não tivesse sido criado por ninguém, mas fosse um fenômeno natural e inevitável como o vento e a chuva. Da mesma forma, o que se chama em inglês de "evento tributável" (taxable event) é conhecido em português como "fato gerador". Em suma, ninguém tributa nada, simplesmente o fato gera e o imposto incide.

Um dia desses eu estava no supermercado e ouvi alguém chamar pelo alto-falante: "atenção colaboradora Fulana..." Agora virou mania chamar "empregado" de "colaborador", camuflando a relação patrão-empregado, chefe-subordinado, manda-obedece. Você não está trabalhando ou cumprindo ordens, está colaborando para o sucesso da empresa, que no final das contas será benéfico para você também. Da mesma forma, empregada doméstica virou "secretária". "Vou pedir para minha secretária fazer um café para nós." Até mesmo alguns professores, no intuito de desfazer a imagem de mestre autoritário, chamam aula de "encontro". "Não esqueçam que daqui a dois encontros teremos prova". Mas, se você é casado e cursa faculdade, com certeza não quererá dizer à sua esposa que está indo a um "encontro".

Às vezes eu fazia encomendas para lojas de discos e depois recebia o telefonema avisando que havia chegado o meu "material". E quando aparecia algum disco que poderia me interessar eles perguntavam se eu já o havia "pegado". Um dia um amigo pediu para ver os meus "trabalhos" – eram os poemas que eu escrevia na adolescência. Quanto eu era rádio-amador PX, um colega veio na minha casa conhecer a minha "estação" – leia-se o rádio instalado na cabeceira da cama (acho que eu era um dos raros PX que modulava deitado). E, embora já esteja mais do que consagrado, até hoje não consigo "chamar" ninguém para alguma coisa. Pra mim é "convidar", mesmo. Certa vez eu comprei um rack de computador e estava empurrando a caixa até o estacionamento do shopping quando o funcionário veio me "orientar" que eu não podia arrastar pacotes. Sujeito legal, ele. Não repreende nem proíbe, apenas "orienta".

Mas nada é mais tabu do que dinheiro. Essa palavra adquire os mais diversos sinônimos conforme a situação: Fulano tem "recurso", eu não tenho "condições", para fazer isso é preciso "estrutura", vou obter os "meios", ainda não temos o "aporte" necessário, faremos uma transferência de "numerário" e assim por diante. Cada vez mais se fala em "investimento" em vez de "preço", salientando que o benefício compensará o gasto. Ninguém ganha "salário mínimo", apenas "salário" (essa também foi o Danilo Nogueira quem observou). Também é raro alguém dizer que vai "pagar" alguma coisa. As pessoas preferem "acertar". "Vim acertar com você." "Você já acertou este mês?" E se você não "acertar", o credor não irá lhe processar ou colocar na Justiça, irá "encaminhar a questão para o Departamento Jurídico" ou, se for pessoa física, "tomar as providências cabíveis".