sexta-feira, novembro 30, 2018

Ney Matogrosso em depoimento informal

A autobiografia de Ney Matogrosso, sem dúvida, é recomendada para os fãs do cantor. Mas não espere grandes revelações em "Vira-Lata de Raça". Os fatos descritos por Ney são essencialmente os mesmos que já haviam sido abordados em entrevistas e, em especial, dois livros anteriores: "Um Cara Meio Estranho", de Denise Pires Vaz (1992), e "Ousar Ser" (2002). Este último era uma coletânea de fotos do saudoso Luiz Fernando Borges da Fonseca entremeadas a trechos de um diálogo de Ney com Bené Fonteneles. As três obras tiveram como ponto de partida depoimentos exclusivos do artista. No caso, o texto final da autobiografia foi redigido por Ramon Nunes Mello. 

Outro aspecto a observar é que, se o livro de Denise estava mais para uma grande reportagem do que para uma biografia no formato tradicional, este também não mostra qualquer compromisso com cronologia e completeza. Sim, Ney fala de sua infância e adolescência, da relação conturbada com o pai, do início com os Secos e Molhados (ele continua afirmando que os empresários americanos que procuraram o grupo no México levaram a ideia da maquiagem para o Kiss, desconhecendo o fato de que, naquele momento, já fazia três meses que o primeiro LP da banda estadunidense havia sido lançado, com máscaras e tudo), seu romance com Cazuza, o Santo Daime, a terapia Fischer-Hoffman, suas opiniões sobre política, sexualidade e liberdade. Mas, como na obra de 1992 (lançada para coincidir com os 50 anos do cantor), o que se tem é muito mais um perfil – talvez em maior foco e detalhe do que antes - do que um relato de sua carreira. Nesse quesito, continuamos aguardando o trabalho do jornalista Julio Maria, que talvez seja publicado em 2019.


Percebe-se que Mello deixou a voz de Ney fluir espontaneamente, mantendo eventuais repetições de palavras e informações. O resultado é uma leitura leve e simpática, como se o cantor estivesse conversando informalmente com o leitor. As notas de rodapé é que mostram um rigor didático, ensinando sobre a divisão do estado do Mato Grosso, o AI-5, a Era dos Festivais e a Era de Ouro da Música Brasileira, entre outras referências. A parte de fotos também é muito rica, incluindo diversas do tempo dos Secos e Molhados (desta vez João Ricardo autorizou, ao contrário do que fez com o livro de Gérson Conrad). Além de uma discografia completa (ou quase: senti falta do disco ao vivo dos Secos e Molhados), citando músicas e autores, e lista de DVDs, filmes e shows, o volume de 288 páginas contém textos de Tárik de Souza (reportagem histórica do Jornal do Brasil sobre o fim dos Secos e Molhados, em agosto de 1974), Nélson Motta, Vinicius Rangel Bertho da Silva (autor do ótimo livro "O Doce e o Amargo dos Secos e Molhados"), Caio Fernando Abreu, Mauro Ferreira e uma matéria da revista Moviola sobre o filme "Olho Nu". A publicação é da editora Tordesilhas.

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Trecho:

"As pessoas que defendem a ditadura não têm ideia do que é viver num país onde as pessoas desapareciam, eram torturadas, jogadas vivas de aviões na restinga do Marambaia. Um ser humano minimamente consciente se revolta contra uma possibilidade de tortura, é simples. Prefiro acreditar que esses militantes de extrema direita, que perderam a vergonha na cara para expor seu ódio e preconceito, são equivocados e desinformados."