sexta-feira, novembro 23, 2018

Kátia Suman e os bastidores da Ipanema

Terminei de ler "Kátia Suman e os diários secretos da rádio ipanema fm", da editora BesouroBox. Mas antes de comentar o livro, que achei simplesmente delicioso, gostaria de repassar algumas lembranças.

Por muito tempo, eu tive como um dogma que a década de 70 foi a melhor de todas para mim. Coincidiu com minha adolescência. Mas, hoje, já não tenho certeza. Acho que os anos 80 foram, no mínimo, tão bons quanto. Se, por um lado, não havia mais a tão adorada Continental, na frequência 1120, por outro, o conteúdo daquela rádio se segmentou entre diversas FMs.

Num primeiro momento, eu tive uma fase de ouvir a Cidade e a Atlântida. Lembro de uma noite, já bem tarde, em que eu estava voltando para casa com meu fuquinha quando, para minha surpresa, surgiu uma voz feminina na Atlântida. Ela se anunciou como "Kátia vampira". Achei interessante a proposta. Uma locutora. Por que não?

Aos poucos, fui dando uma chance para a programação diversificada e fora do esquemão da Bandeirantes FM. Certa noite em 1983 - eu apostaria que foi em outubro - eu estava com meu fuquinha estacionado na Travessa Comendador Batista, não lembro se esperando minha namorada ou com ela no carro, escutando o Ricardo Barão e seu Estúdio 576. Ali ele anunciou que a programação da Bandeirantes estava migrando para uma nova rádio, que se chamaria Ipanema, e que já estava no ar em transmissão simultânea. Inclusive ele sugeriu aos ouvintes que já fossem procurando a frequência 94.9.

Pois a Ipanema me acompanharia por mais de dez anos. Eu me sentia em casa ouvindo aquele modelo de programação tido como "alternativo". Foi mais ou menos nessa época que eu comecei a frequentar lojas de discos raros e a "sintonia" de quem buscava esse tipo de material (e também dos vendedores) era a mesma de quem escutava a rádio. Ricardo Barão foi proprietário da Disco Voador, especializada em rock. Sérgio Vasconcellos, sócio da Grammy Discos Raros, substituiu Kátia nas férias dela, no começo dos anos 90. E também patrocinava dois programas na Ipanema, "Piratas no Ar", sobre discos piratas, e "Base Sonora". Este eu carinhosamente apelidei de "encalhes da Grammy", pois sempre focalizava algum álbum antológico... que a loja ainda não tinha conseguido vender! 

Por isso adorei o livro da Kátia Suman. Foi a chance de saber tudo o que estava acontecendo pelo lado de dentro da rádio enquanto eu a ouvia praticamente todos os dias. A radialista inicia contando a vida dela, o nascimento por acaso na Bahia (onde trabalhava seu pai, o jogador de futebol Gago), a passagem por São Paulo, a experiência com teatro, o desejo de trabalhar na então Bandeirantes, a indicação para o horário da madrugada na Atlântida até, finalmente, em abril de 1984, a estreia na Ipanema. 

Os recados de um turno para o outro eram dados em um caderno que ficava no estúdio. Quando um era totalmente preenchido, vinha outro em seu lugar. Pois Kátia guardou todos e são eles os "diários secretos" referidos no título. A autora selecionou a mensagens mais interessantes deixadas por ela e pelos colegas e as transcreveu cronologicamente em capítulos temáticos, impressas em fonte tipo script, para dar a ideia de textos manuscritos. Ali se encontram desde reclamações de parte a parte até sugestões para a programação, dicas de shows, recados repassados de ouvintes, "xixis" do diretor Nilton Fernando, réplicas, tréplicas e muito mais. Além de Kátia e Nilton, também aparecem assinaturas de Mary Mezzari, Nara Sarmento, Mauro Borba, Jimi Joe, Nilo Cruz e outros. Em termos históricos, eu destacaria:

- A repercussão da eleição de Olívio Dutra para Prefeito de Porto Alegre, em 1988.

- A primeira eleição presidencial em mais de 20 anos, em 1989.

- A chegada do CD à rádio, alta novidade ainda chamada de "disco laser" ou apenas "laser".

- O início do uso do computador.

- Os primórdios da Internet (Kátia dá uma verdadeira aula via caderno, ainda no tempo do saudoso Netscape).

Aqui, peço licença para resgatar outra lembrança pessoal. Em 1987, liguei para a Kátia para perguntar como podia fazer para participar do Clube do Ouvinte, programa criado por ela para ser apresentado, como dizia o nome, pelos ouvintes. Ela foi bem legal comigo, me deu todas as dicas, mas ainda não foi daquela vez que marquei minha participação. Lembro que sugeri um especial sobre David Bowie, mas já tinha um agendado. Pensei então em Charly Garcia, mas, igualmente, o cantor argentino seria abordado em um programa próximo. Pois o livro reproduz algumas páginas dos cadernos e outras anotações. Na página 97, aparecem todos os Clubes do Ouvinte programados entre 22 de abril e 15 de dezembro de 1987. Dito e feito, lá estão os nomes de David Bowie e Charly Garcia. Foi justamente aquela página que Kátia consultou enquanto falava comigo. E os respectivos apresentadores - Cagê e Nara Sarmento - viriam a trabalhar na rádio.

No capítulo "making of" (Kátia escreve tudo em minúsculas, é uma marca registrada dela), a primeira observação de 1993 é de que não tem nenhum Clube do Ouvinte agendado. Ela acrescenta um comentário atual dizendo que foi nesse ano que o programa começou a decair (já tinha tido seu tempo reduzido de duas para uma hora) e se arrastou até 1994. Ironicamente, foi bem nesse período que eu participei de quatro ou cinco edições, depois de me formar em Jornalismo. Lembro que o primeiro, "Raridades e piratarias de David Bowie", foi bastante elogiado, de forma que não me sinto responsável por essa "decadência".

Uma curiosidade é que, em 1988, o diretor Nilton Fernando deixou no caderno uma longa análise comparativa entre a Ipanema e a saudosa Continental dos anos 70. Como ouvinte das duas rádios, concordo com quase tudo o que ele escreveu. De fato, a Continental começou como uma versão gaúcha da Mundial do Rio, tocava músicas das paradas de sucesso (do exterior, mas tocava), tinha um padrão de locução tradicional, com o indefectível "vozeirão", e não ia muito a fundo no rock pesado (exceto no programa que Beto Roncaferro apresentou à meia-noite, em certa época). Mas discordo quando ele diz que a emissora dos anos 70 não dava tanta força aos músicos gaúchos e que as gravações locais só tocavam no "Mr. Lee em Concerto". Eu lembro bem que os talentos de Porto Alegre, gravados no Estúdio 2 da rádio, faziam parte da programação normal. Casualmente, a Continental também tinha um caderninho (na verdade um cadernão). E às vezes também rolavam algumas farpas entre locutores de horários diferentes (eu fui testemunha ocular de uma troca de mensagens mais tensa entre meu irmão João Carlos e Ruy Carvalho, em razão de um horário em que a rádio esteve sem locutor).

Enfim, o livro de Kátia vem se somar a "Prezados Ouvintes" de Mauro Borba, para registrar a história da saudosa e querida Ipanema FM. Leitura obrigatória para os ouvintes da rádio e para entusiastas do radialismo em geral.