sábado, maio 16, 2009

Jogo das diferenças

Já comentei aqui sobre minha decepção com o DVD "O Mundo a Seus Pés", lançado no Brasil pela Europa Filmes, sobre o Cosmos de Nova York. Não pelo documentário em si, que é excelente, mas por não incluir os extras da edição original. Vai daí que acabei encomendando o DVD importado, mesmo, pois não estava tão caro. A falta de legendas não é problema para mim. O único contratempo é a região incompatível com os aparelhos nacionais. Mas tenho dois DVD players desbloqueados. E a unidade de DVD do computador permite um número limitado de troca de regiões. Usei desse recurso para capturar algumas imagens, como vocês veem abaixo:

A edição brasileira traz somente o filme em padrão DVD e em MP4. E lambam os beiços.

Já o DVD americano é farto em extras. Dos cinco títulos, dois deles são de interesse total para os brasileiros. "Stories of Pelé" é um trecho de 11 minutos em que várias personalidades internacionais do esporte rasgam elogios ao nosso craque. "Pelé's Farewell Game" mostra um compacto do jogo de despedida de Pelé em Nova Jérsei, em que ele jogou no primeiro tempo pelo Cosmos e o segundo pelo Santos. A partida de 1981 contra o Chicago Sting é interessante para observar a decisão em pênaltis à moda americana. O cobrador sai de fora da área e tem cinco segundos para marcar. O goleiro avança para cortar o ângulo do chute e o instante em que os dois se aproximam é crucial. Ao contrário do pênalti tradicional, a chance maior é de que o gol não aconteça.

Aqui estão algumas imagens da despedida de Pelé. O carinho dos americanos pelo brasileiro é comovente. O próprio narrador não mede palavras para expressar sua evidente admiração pelo jogador.

A exemplo do que fez no milésimo gol, Pelé pede atenção às crianças - não do Brasil, desta vez, mas do mundo. Emocionado, recebe um abraço de seu antigo colega Carlos Alberto, também jogando no Cosmos.

Sua então esposa Rose assiste à partida.

"Pelé fez 5 gols em uma partida 6 vezes e 8 gols uma vez." Ele faria um gol de falta neste jogo, pelo Cosmos.

No intervalo, Pelé se despede em definitivo da camisa do Cosmos e a presenteia a seu pai, Dondinho.

Ao final da partida (2 a 1 para o Cosmos), Pelé inicia uma volta olímpica segurando as bandeiras do Brasil e dos Estados Unidos, mas mal corre alguns passos e já é carregado por seus companheiros.

O que teria impedido esse material suplementar de ser lançado justamente no país onde o interesse seria maior? Razões contratuais? Dificuldade de traduzir as narrações das partidas para legendar? Algum impedimento relacionado à primeira esposa de Pelé, que aparece por diversas vezes na transmissão do jogo de despedida? O fato de o ex-goleiro do Cosmos, Shep Messing, contar sobre a recomendação de Pelé de que andasse de carro blindado em São Paulo? É difícil entender. Considerando outros casos de DVDs capengas lançados no Brasil, a impressão que se tem é a de que nem todas as editoras brasileiras entendem o valor dos extras para colecionadores. Eu já comprei filme em duplicata apenas porque a segunda edição trazia bônus diferentes. Se o original já está assim, tudo bem. Mas saber que houve corte é muito decepcionante. Ainda mais nesse caso, em que o protagonista é o brasileiro mais famoso de todos os tempos.

O filme em si é muito interessante. Para nós, brasileiros, é mais ou menos como conhecer a história de Dom Pedro IV de Portugal - que não é outro senão o nosso Dom Pedro I quando voltou à sua pátria. Aqui, vemos a história do rei do futebol numa espécie de prorrogação de sua carreira. Para nós, seus melhores momentos já haviam passado. Para os americanos, estavam apenas começando.

O documentário fala da dificuldade que foi convencer as autoridades brasileiras a concordar com a ida de Pelé para os Estados Unidos. Até Henry Kissinger interveio. Mas o objetivo foi atingido: Pelé conseguiu fazer com que os americanos se interessassem pelo "soccer" (de "Association Footbal"), como eles chamam. O New York Cosmos pertencia à Warner Communications e recebeu o devido aporte para consagrar-se.

O italiano Giorgio Chinaglia foi o próximo craque a ser trazido. Mesmo tendo sido o maior goleador do time, não angariou muitos simpatizantes. Somente a altíssima cúpula da Warner parecia gostar dele. Os demais dirigentes não têm papas na língua para manifestar seu desgosto com a personalidade do italiano. Muitos o apontam como o responsável pela derrocada do time, ao envolver-se com a administração. É curioso que Chinaglia colaborou amplamente com o documentário, inclusive contribuindo com um depoimento para os extras em "Stories of Pelé", mas é apresentado como o vilão da história. O que ele deve ter achado disso?

A informação de que "Pelé negou-se a dar entrevistas" surge nos créditos ao som de uma máquina registradora, sugerindo que o problema deve ter sido dinheiro. Já Carlos Alberto aparece diversas vezes, inclusive comentando sobre a tentativa dos Estados Unidos de sediar a Copa de 86, depois da desistência da Colômbia. Se tivessem conseguido, talvez o futebol não tivesse morrido naqueles gramados, como veio a acontecer. Uma pergunta óbvia que se impõe é: merece ser o palco de uma Copa do Mundo um país que se candidata para tentar desesperadamente salvar o interesse pelo esporte em seu território? Depois, como se sabe, a história mudaria, com a Copa de 94. Mas no começo dos anos 80 o Cosmos viveu seus últimos momentos de glória. Atualmente, a marca pertence a Peppe Pinton, ex-empresário de Giorgio Chinaglia.

Por fim, há outra diferença entre as edições brasileira e americana. Quando assisti ao documentário pela primeira vez, achei sem sentido que fossem mostradas as fotos de nu frontal que o goleiro Shep Messing fez para a revista americana Viva no começo da carreira. Imagine você estar com sua família vendo um filme sobre futebol e, de repente, aparece um homem pelado, sem nenhuma censura? Desnecessário. Pois agora constato que, na versão lançada nos Estados Unidos, colocaram uma bola de futebol em frente, digamos, à parte mais ofensiva (ver imagem acima). Será que Messing sabe que o Brasil (e talvez outros países) o está vendo por inteiro?


O caso gaúcho

Embora o contexto e as proporções sejam bem diferentes, há semelhanças entre a história do Cosmos de Nova York e o Renner, de Porto Alegre. Até mesmo o título original do documentário sobre o time americano, "Uma Vez na Vida" (Once in a Lifetime), caberia para o clube portoalegrense. Afinal, na lista de campeões gaúchos de todos os tempos, em meio a incontáveis citações de Grêmio e Internacional, aparece o Renner em 1954. A Estação Elétrica Filme e Vídeo realizou um filme sobre esse episódio histórico: chamou-se "O Papão de 54".

Infelizmente, não há imagens em movimento do Renner jogando. Mas existem fotos e também os jogadores, que contam, emocionados, sobre os bons tempos do saudoso clube. O Grêmio Esportivo Renner foi criado entre os operários da fábrica A.J. Renner em 1931. Em 1945, profissionalizou-se. O entrosamento entre os jogadores, que também trabalhavam na empresa, criou um clima de cumplicidade entre eles. Jogavam por amor ao esporte. O Estádio Tiradentes, na Av. Sertório, era chamado de Waterloo. Ninguém ganhava do Renner em casa.

O time foi crescendo até que, em 1954, não teve pra ninguém. Sagrou-se campeão invicto com uma vitória de 9 a 2 sobre o Juventude. Mesmo com a hegemonia de Grêmio e Inter na capital gaúcha, o Renner tinha a simpatia dos moradores do bairro Navegantes e arredores. Não faltou torcida para comemorar o título. Entre os craques estava Breno Mello, que depois estrelaria o filme "Orfeu de Carnaval".

Em 1959, a Renner decidiu desativar o time para redirecionar a verba para publicidade. E assim encerrou-se um dos mais bonitos capítulos da história do futebol gaúcho. O documentário tem música de Hique Gomez, filho do jogador Léo. Ele lembra que sua mãe conheceu seu pai porque este passava em frente à casa dela quando ia treinar no IPA. "Se não fosse o Renner, talvez eu nem tivesse existido!"

"Papão de 54" tem narração de Ruy Carlos Ostermann e participação de vários ex-jogadores. É uma produção quase perfeita exceto por um detalhe mínimo: a forma como as fotos são mostradas. É comum em documentários acrescentar-se algum movimento às imagens paradas, como aproximação para destacar algum detalhe. Aqui, foi usado um efeito "giratório" que, além de nada acrescentar, acaba se tornando cansativo. Sugestão caso haja um relançamento: refaçam a parte das fotos e deixem-nas paradas na tela. Assim o espectador não fica tonto.