Pelé em versão para americanos
Talvez vocês se perguntem por que fiz questão do texto em inglês se Pelé é brasileiro e saiu uma edição em português no Brasil, sob o título "A importância do futebol". Ocorre que, acreditem se quiserem, o livro foi escrito originalmente em inglês. E não é o primeiro caso. Desde que Pelé ficou famoso nos Estados Unidos, já saíram pelo menos três autobiografias dele com redação final de escritor americano. A dúvida é: alguém serviu de intérprete? Sabe-se que Pelé se comunica razoavelmente em inglês, com certeza melhor do que Joel Santana, como ele mesmo, Pelé, disse num comercial. Mas pode ser considerado fluente?
O principal motivo de minha curiosidade é um erro histórico que encontrei na edição em inglês - devidamente corrigido na tradução para o português, como já conferi. No texto original, o "Dia do Fico" de Dom Pedro I se confunde com o Dia da Independência, em 7 de setembro. Ou seja, no dia 7 de setembro, Dom Pedro decidiu ficar no Brasil e assim proclamou-se a independência do país. Achei outros detalhes questionáveis, esses mantidos na versão brasileira. Por exemplo: na Introdução, Pelé afirma que praticava seus primeiros chutes com uma "toranja". Ora, essa fruta é tão rara no Brasil que é mais conhecida por seu nome em inglês, grapefruit. Ainda segundo o livro, Pelé estreou como ator na TV brasileira no papel de "um alienígena investigando a Terra para preparar uma invasão". Errado! Eu vi a novela "Os Estranhos" em 1969 e lembro bem: Pelé vivia um escritor terráqueo chamado Plínio Pompeu. Os alienígenas eram outros e pouco contato tiveram com ele.
Por fim, um aspecto que chama a atenção é que Pelé se apresenta como um jogador politizado e consciente do que ocorria nos tempos da ditadura militar. O capítulo 12 da parte intitulada "México, 1970" não parece ter sido escrito pelo mesmo cidadão que supostamente disse "o povo brasileiro não está preparado para votar" e que posava orgulhoso ao lado dos Presidentes daquele período. Ele cita as torturas sofridas pela então estudante Dilma Roussef, os brasileiros forçados ao exílio, compara a situação da época com a Alemanha nazista e menciona também o golpe de Augusto Pinochet no Chile em 1973. No capítulo 19, ele afirma:
Depois que vencemos a Copa de 1970 o governo militar não parou de usar a nossa vitória como peça de propaganda para esconder os problemas reais do Brasil. Enquanto isso se multiplicavam as histórias que ouvíamos de torturas e desaparecimentos. Eu não posso dizer que a política foi a única razão para minha aposentadoria da seleção brasileira, mas certamente foi um elemento de peso na minha decisão. Eu não podia suportar o fato de que nosso sucesso estava sendo usado para acobertar atrocidades.
No parágrafo seguinte, ele lamenta "não ter ido a público mais cedo para falar dos abusos que estavam acontecendo nos anos 1960 e 1970". Mais adiante, narra um encontro com Dilma Rousseff em um avião em 2011.
A versão de que Pelé teria deixado a Seleção por protesto político já havia sido mencionada em uma daquelas folhas de cobertura das bandejas do McDonald's. E o fato de ele querer se mostrar ao mundo como uma celebridade com consciência política seria louvável. O problema é que é difícil conciliar a imagem que sempre se teve de Pelé no Brasil com o revisionismo que o livro tenta passar. Muitos brasileiros que estavam sob efeito da censura e da propaganda ufanista reviram suas posições com a abertura política nos anos 80. Mas a suposta autobiografia tenta vender a ideia de que Pelé sempre soube do que acontecia e desaprovava tudo. Ora, em 1972, o craque deu a seguinte declaração ao jornal uruguaio La Opinión, hoje citada em livros no mundo inteiro: "Não há ditadura no Brasil. O Brasil é um país liberal, uma terra de felicidade. Somos um povo livre. Nossos dirigentes sabem o que é melhor para nós e nos governam com tolerância e patriotismo."
De resto, não se pode dizer que "Why Soccer Matters" ou "A importância do futebol" não seja uma leitura interessante e agradável. Pelé relembra as partidas marcantes de sua carreira, em especial nas Copas, descrevendo os gols com razoável detalhe. Nada diz sobre seu divórcio, os problemas com o filho Edinho ou o fato de ter reconhecido sua filha Sandra na Justiça.
Sou fã de Pelé, como já deixei claro neste meu texto aqui. Tenho um razoável material sobre ele em livro e vídeo. O fato de ele ter sido simpático aos Presidentes da ditadura não diminui minha admiração, pois entendo que era um fenômeno generalizado entre famosos menos politizados. O que me incomoda é ver uma obra tentando reescrever a história, possivelmente com forte interferência do americano que redigiu o texto final. O Pelé que emerge em "Why Soccer Matters"/"A importância do futebol" é o que gostaríamos que ele tivesse sido, mas não necessariamente o que foi.
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