segunda-feira, janeiro 09, 2006

O pidão

Há quem admire a minha capacidade de dizer não. Na verdade eu diria que evoluí muito, mas ainda não cheguei no nível que gostaria, que é o de dizer não em qualquer situação, para qualquer pessoa, e não me sentir culpado por isso. Se hoje já consigo não ceder sempre, é porque vivi situações desesperadoras que um simples não teria evitado. Como diz o outro, a dor ensina a gemer.

Por outro lado, impressiona-me a facilidade que certas pessoas têm de pedir. Não têm o menor escrúpulo ou cerimônia: pedem tudo, para qualquer um e em qualquer momento. Sei que às vezes a necessidade se sobrepõe à etiqueta. Não me refiro a esses casos. Penso é no pidão contumaz, aquele que tem como lema “nunca compre o que pode pedir emprestado” ou simplesmente “quem não chora, não mama”. Aquele para quem você não pode comentar que tem isso ou comprou aquilo sem que ele diga, automaticamente: “me empresta?”

Emprestar dinheiro é um caso à parte. Houve uma época em que eu vivia mais folgado e nunca negava se alguém me pedia algum valor que estivesse ao meu alcance. Eu pensava: puxa, se ele chegou a pedir é porque deve estar mesmo em apuros, não custa ajudar. Ingenuamente, eu não sabia que, quem pede uma vez, pede sempre. Dito e feito. Praticamente uma vez por mês um estagiário vinha me pedir empréstimo. Raramente pagava na data prometida. Depois passamos a trabalhar em mesas separadas. Um dia ele sentou perto de mim e ficou fazendo rodeios, perguntou como estava o serviço novo e a vontade que eu tinha é de dizer: pede logo! Quanto? A gota d’água foi quando, depois de meses em que não trabalhávamos mais no mesmo local, ele localizou meu novo endereço e surgiu na porta com aquela cara de... bem, de pidão, ora! Levou um não e nunca mais apareceu.

Em 1979 eu e meus irmãos éramos rádio-amadores PX (Faixa do Cidadão). Um dia, com a maior cara-de-pau, um colega de rádio pediu emprego a um de meus irmãos. No ar, mesmo, para todo o mundo ouvir. Meu irmão havia trabalhado numa emissora de rádio e o tal sujeito queria que ele usasse sua influência para arranjar-lhe uma boquinha lá. Eu estava junto quando isso aconteceu e ainda lembro a voz dele dizendo: “E depois aquele presente de fim-de-ano!” Meu irmão desconversou e isso criou um clima de desconforto entre eles.

Claro que eu já pedi muitas vezes e lógico que existem pessoas que ainda me pedem e são bem-vindas. O pidão se diferencia exatamente por não ter noção de limite. Lembro em 1990 quando, por desinformação, trouxe dos Estados Unidos um filme Kodachrome, que não se revela no Brasil. Como resolver? Lembrei de um amigo que era comissário de bordo e também gostava de fotografia. Escrevi-lhe uma longa carta (naquele tempo não existia e-mail) explicando que não era do meu feitio pedir, mas que naquela situação a pessoa certa para me ajudar era ele. Ele respondeu bem solícito, dizendo quando e como poderia revelar e trazer o filme para mim. Deu tudo certo e eu nunca mais lhe pedi nada.

Às vezes penso se não sou mesquinho. Aí lembro de alguns episódios desagradáveis e concluo que é problema meu. Essa norma de não emprestar discos, por exemplo, também nasceu de uma experiência negativa. No começo de minha adolescência eu emprestava tudo, até meus equipamentos de som. Até que um gravador meu desapareceu e um amplificador voltou danificado. Alguns amigos meus, que haviam me alertado para que não emprestasse, se encheram de razão, ficaram repetindo mil vezes no meu ouvido “eu avisei, eu avisei, quem mandou emprestar, eu falei”. A partir dali, decretei que não emprestava mais nada. Quando esses mesmos amigos vieram pedir LPs meus e eu neguei, ficaram magoados. Antes disso eu já tinha emprestado um LP para um vizinho de andar. Depois ele veio me mostrar: “Segurei mal o disco e ele rachou, mas só pegou a primeira faixa. Tu não gostas dessa música, né?”