sexta-feira, maio 13, 2005

Cachorros

Ontem, por ironia, saíram duas notícias antagônicas na mesma página da Zero Hora. Uma relatava que uma menina de um ano e três meses havia sido morta por um cachorro pitbull em Pelotas. A outra contava que um motorista tinha sido condenado por atropelar um labrador numa situação em que o acidente poderia ter sido evitado.

Emitir opiniões polêmicas é sempre perigoso, pois corre-se o risco de ser mal interpretado. Quero começar deixando bem claro que tenho o maior respeito pelos animais. Achei desumano o que fizeram com a cachorra Preta, por coincidência também em Pelotas, amarrando-a a um automóvel e arrastando-a pelas ruas. Os bichos são seres espontâneos, instintivos e, em geral, desprovidos de maldade. Os animais ferozes assim o são por natureza. Adoro visitar zoológicos e assistir a documentários sobre o reino animal.

No entanto, estou numa fase de achar que os cachorros estão ocupando espaços exageradamente privilegiados em nossos lares. Consigo entender a curtição que é ter um animal de estimação. Os cãezinhos são simpáticos, reconhecem o dono e têm uma forma toda especial de demonstrar afeto. Com isso, acabam acontecendo algumas inversões de valores. As pessoas carentes e/ou problemáticas se refugiam dando carinho ao animal, com aparente retribuição. E como o cachorro não pede mesada, não reclama da falta de liberdade e não se envolve em más companhias, torna-se uma companhia segura e isenta de preocupações. Só precisa ser vacinado, alimentado e levado para passear regularmente. E fica sozinho em casa, se for preciso.

Minha mãe teve um cachorro a quem amou como um filho. Não, não tenho trauma nenhum disso. Nunca me faltou carinho da Dona Irene. E eu também curtia o meu, digamos, "irmão adotivo". E como eu passava horas a fio trancado no meu quarto ouvindo música, o cocker spaniel Rocky era a companhia mais constante da minha mãe. Quando ouvíamos o barulho das patas dele caminhando, sabíamos que ela vinha junto. Ele era a sombra dela.

Infelizmente, o Rocky tinha um comportamento imprevisível com outras pessoas. Primeiro, fazia festa e conquistava a confiança. Depois, avançava e mordia. Com isso, foi hostilizado no prédio onde morávamos. O condomínio decidiu aplicar uma "operação padrão" e obrigar os moradores a se desfazer de seus animais de estimação. Na prática, o objetivo era livrar-se do nosso cachorro. Sabíamos disso. Foi um drama. Meu pai ainda tentou achar uma solução contemporizadora, mas o condomínio foi irredutível. O cachorro teve que ir. Ficou na vivenda da Palmira Gobbi e não viveu muito mais tempo depois.

As pessoas de fora comentavam: tanto sofrimento por um cachorro? Eis a questão. Os cães conquistam rapidamente um lugar de honra em nossas vidas. Para os donos, passa a ser algo normal. Mas os vizinhos e amigos estranham. Hoje, ressalvado o respeito de que falei no início, acho cachorro um bicho muito chato. Você chega na casa de um amigo e lá está o animal latindo a plenos pulmões, tirando o seu sossego. Fora os que começam a fazer isso no meio da noite e não param mais, atrapalhando seu sono. Quem gosta de correr, principalmente na praia, tem histórias pra contar de cachorros soltos que começaram a persegui-los. Sim, porque alguns donos se orgulham de "não precisar" levar seus cachorros na guia. E aí acontecem os incidentes. E já contei aqui a história da namorada que me pediu para sair do quarto para o cachorro parar de latir.

Certa vez ouvi a mãe de duas meninas dizer, entusiasmada, que tinha comprado um cãozinho de estimação. E falou com todas as letras: "Um cachorro dá mais alegria do que uma pessoa!" Não escondi minha indignação com a frase, mas resisti a meu impulso de perguntar por que ela não deixava as filhas num canil. Em outra ocasião, um cão de rua me seguiu até a garagem. Quando entrei no carro, ele começou a chorar. E eu também, pois me identifiquei demais com a solidão daquele bichinho. Ou talvez ele estivesse perdido, não sei. Só sei que, com um nó na garganta, eu disse pra ele: "desculpe, não posso te adotar".

Até que eu iria curtir bastante um cachorro em minha situação atual. Mas seria muita crueldade deixar o bicho sozinho o dia inteiro no meu apartamento. E depois eu teria que ter todos os cuidados, vacina, alimentação... É muita energia despendida num ser irracional. Um cachorro de rua se vira, um menino de rua se torna delinqüente e uma menina abandonada tende a se prostituir. Não pretendo adotar ninguém, mas também não vou colocar um animal no lugar que poderia ser de uma criança.

A verdade é que o afeto dos donos por seus cães está fugindo de controle. Os pittbulls matam, mutilam, estraçalham e os donos teimam em defendê-los e dizer que são mansinhos. Aí um motorista atropela um labrador e é condenado. Quem vai pagar pela morte da nenê em Pelotas? Repito que está havendo uma inversão de valores. Os animais merecem respeito e bons tratos, mas cada um no seu lugar. As pessoas ainda são mais importantes.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Muito bom, Emilio. Tenho cachorro mas concordo contigo.
Aldo

9:45 PM  

Postar um comentário

<< Home