quarta-feira, março 07, 2018

As lentinhas

Meu amigo Otávio Dieguez, sósia do percussionista Luis Conte (que veio a Porto Alegre com James Taylor e, recentemente, com Phil Collins), me enviou um link de uma matéria da Rolling Stone americana de 15 de março de 2016 - pode ser lida em inglês aqui. Nos 40 anos de Destroyer, considerado o melhor álbum do Kiss, os integrantes originais mais o produtor Bob Ezrin contribuem com suas lembranças. Mas o que me chamou a atenção não teve nada a ver com o citado LP. Gene Simmons, com seu tradicional discurso de autoengrandecimento, vangloria-se de que o Kiss é a banda americana que ganhou mais discos de ouro em todas as categorias (aqui é bom lembrar que os Beatles são ingleses e que Michael Jackson e Elvis Presley não são "bandas"). Faz a ressalva que, no caso dos singles (equivalentes aos nossos velhos "compactos simples"), empataram com os Beach Boys com dois títulos cada um. 

Aí é que vem a grande curiosidade: as músicas do Kiss que emplacaram disco de ouro em single foram "Beth" e "I Was Made For Loving You". As duas são de estilos totalmente atípicos para o grupo. A primeira é uma balada orquestrada com vocal e co-autoria do baterista Peter Criss. A segunda é uma tentativa de Paul Stanley de criar uma canção em estilo disco music. O resultado ficou interessante porque, se a batida é realmente discotheque, a massa sonora das guitarras é puro rock and roll. Muitos fãs do Kiss que execram o som "disco" (pronunciar "díscou") admitem adorar "I Was Made For Loving You". 

Apesar do sucesso absoluto dessas duas gravações, o Kiss preferiu não cair na armadilha de tentar repetir a fórmula. Manteve-se fiel à sua proposta original de hard rock básico em ritmo 4/4. No caso de Paul Stanley, não houve problemas. Ele próprio confessa que fez "I Was Made for Loving You" de brincadeira, após comparecer a uma danceteria e concluir que poderia compor naquele estilo "dormindo". Mas não pretendia retomá-lo.

Com Peter Criss, a situação foi mais complicada. Por ter criado o maior sucesso do grupo em 1976, o baterista supôs que teria mais espaço para mostrar suas composições. Talvez até tenha sonhado em se tornar o hitmaker do Kiss, gravando um clone de "Beth" a cada novo disco. Não rolou. Futuramente, a banda se notabilizaria pelas power ballads de Paul Stanley, como "I Still Love You", "Forever", "Every Time I Look at You" e "I Will Be There". Mas canções românticas e melosas com orquestra não entrariam mais nos álbuns do quarteto.

Assim pensando rápido, lembro de duas bandas que mudaram seus rumos a partir de baladas de sucesso. Uma delas foi Chicago, cujo estilo, no começo, era marcado por sopros de metal e arranjos com toques de jazz. Até que, em 1976, o integrante Peter Cetera contribuiu com a linda e acessível "If You Leave Me Now". Ali o Chicago foi descoberto por um público que praticamente o desconhecia. E vieram outras canções românticas de Cetera: "Baby, What a Big Surprise", "Hard to Say I'm Sorry", "Hard Habit to Break", "Love Me Tomorrow" e "You're the Inspiration". Quando Peter Cetera saiu do grupo em 1985, deixou uma herança difícil para seus ex-colegas: fãs (mal) acostumados a ouvir uma balada por álbum. Foi substituído pelo baixista Jason Chaff, excelente vocalista, mas sem a garra e a personalidade de seu antecessor. Os novos êxitos radiofônicos do Chicago tentaram manter a fórmula, mas soavam comuns na voz do cantor substituto.

O outro grupo que se deixou levar pelo canto de sereia das baladas de sucesso foi o Foreigner. Em seus primeiros LPs, ainda nos anos 70, as músicas de trabalho eram rocks bem empolgantes, como "Long Long Way From Home", "Feels Like the First Time", "Hot Blooded" e "Double Vision". Até que, em 1981, a romântica "Waiting for a Girl Like You" estourou nas rádios. Depois vieram pelo menos mais duas canções na mesma linha: "I Want to Know What Love Is" e "I Don't Want to Live Without You".

Por outro lado, houve também a fase "baladeira" de Alice Cooper. Começou oficialmente em 1975 com "Only Women Bleed", mas foi em 1976 que ele realmente estorou com "I Never Cry". Ele que, para os jovens dos anos 70, era sinônimo de rock pesado, de repente virava um cantor de música lenta. E assim vieram também "You and Me" e "How You Gonna Se Me Know", além de outras menos conhecidas como "Wake Me Gently". Sempre que Alice Cooper vem ao Brasil, aparece alguém para perguntar se ele vai cantar "as lentinhas". Não, não vai. Os shows de Alice se mantêm fiéis ao rock "de terror" que sempre foi sua marca registrada. Tanto que ele logo descartou as baladas já na entrada dos anos 80. Quem pensar em ir a um show de Alice Cooper só para ouvir "as lentinhas" aproveitará melhor seu tempo se ficar em casa escutando a Antena 1.

Fazer sucesso deve ser muito bom, até porque, além de fama, traz também fortuna. E é bom frisar que nenhum dos artistas citados abandonou completamente suas origens. Ainda se ouvem sopros de metal no Chicago e acordes pesados de guitarra no Foreigner. De qualquer forma, há que se admirar a firmeza de propósitos de Kiss e Alice Cooper. Mesmo tendo experimentado o gostinho da popularidade radiofônica, preferiram retomar seu rumo original.