Conforme prometido, aqui vai meu segundo texto sobre o
Inconsciente Coletivo, contando sobre o ensaio do grupo a que assisti em 1976.
Mas vou começar explicando como aconteceu meu contato com os músicos. Então é o
momento certo para lembrar como me tornei fã.
Em 1975, o Inconsciente Coletivo era um de muitos grupos e
artistas gaúchos que a Rádio Continental de Porto Alegre rodava com
exclusividade. Mas eu ainda não sabia disso. Quando ouvi "Voando
Alto" pela primeira vez, pensei que eles já tivessem disco. Depois
comentei com um amigo sobre um conjunto novo que eu tinha escutado, "não
sei das quantas Inconsciente" e ele disse na hora: "Inconsciente
Coletivo". E citou algumas músicas que conhecia. Mais adiante, meu irmão
João Carlos Pacheco, na época morando no Rio, veio a Porto Alegre em viagem a
trabalho. Ele sempre visitava a Continental, onde havia sido e voltaria a ser
locutor, às vezes até dando uma canja no microfone. Pois numa dessas visitas eu
fui junto. E o operador da rádio, o Magrão Augusto, me mostrou o cartucho com a
música "Voando Alto". Ali fiquei sabendo como eram feitas as
gravações exclusivas.
Na noite de 30 de abril de 1976 aconteceu a primeira das
duas apresentações do concerto "Vivendo a Vida de Lee" nº 3. Eu,
minha irmã e uma turma de amigos comparecemos ao Teatro Leopoldina para
prestigiar Beto de Barcellos, irmão de meu (hoje ex) cunhado. Mas claro que eu
estava na expectativa das apresentações todas. E o grupo que eu mais esperava
não decepcionou. Pelo contrário, confirmou a qualidade que eu já previa pelas
amostras que escutara no rádio. Depois, no programa Mr. Lee em Concerto, o
radialista Júlio Fürst colocou no ar uma sequência de depoimentos de jovens que
haviam assistido aos shows. O primeiro deles foi curtíssimo, mas resumiu exatamente
o que eu sentira: "Foi tudo muito legal, mas o melhor mesmo foi o
Inconsciente Coletivo".
Cheguei em casa com minha irmã (grávida de seu segundo
filho, meu sobrinho Rafael) e nossa mãe quis saber tudo sobre o show. Falamos bastante e eu não deixei de
elogiar o grupo que acabara de ver ao vivo pela primeira vez. Minha irmã
endossou minha opinião. No começo daquele ano, meus pais haviam feito uma
viagem histórica a Gravatal. Histórica porque, nessa época, era raro eles
viajarem. Mas dessa vez foram e se divertiram. E fizeram amigos. Um deles foi o
senhor João Araújo e sua esposa. Um dia, ele comentou com meus pais que seu
filho tinha um conjunto chamado Inconsciente Coletivo. Minha mãe lembrou do
nome na hora e falou de minha admiração pelo grupo. Eles eram os pais do João
Antônio. Foi ali que surgiu um pré-convite para eu um dia assistir a um
ensaio deles.
Depois disso, veio a notícia que me deixou eufórico: eles
haviam sido contratados pela Tapecar! Iriam gravar um disco. Não recordo
exatamente, mas acho que foi por isso que resolvi cobrar logo de minha mãe que
fizesse um contato para saber se ainda estava de pé a possibilidade de eu
comparecer a um ensaio do Inconsciente. E se eles estourassem e acabassem se
tornando, digamos, inalcançáveis aos simples mortais? Minha mãe telefonou para
a esposa do seu João e ela falou: "Eles estão ensaiando agora, diz para
ele vir, então!" Era um domingo. Não vou lembrar a data certa, mas com
certeza foi algum tempo depois de 7 de agosto de 1976, em que havia acontecido
o Vivendo a Vida de Lee em Passo Fundo. Eu tinha 15 anos.
Fui de táxi até a casa do João Antônio, na rua 16 de julho.
O grupo ensaiava na casa de Alexandre, um pouco mais adiante. A mãe do João me
levou até lá. Ao me aproximar, já senti uma emoção ao escutar a música saindo
da janela e avistá-los empunhando os instrumentos pelo lado de dentro. Ouvi um
som de flauta e perguntei: "Flauta é ele (referindo-me ao João Antônio)
que toca?" Ela confirmou: "Sim, flauta é o meu filho."
Fomos atendidos pela irmã do Alexandre. Ela nos acompanhou
até o quarto onde eles estavam tocando. A mãe de João Antônio me apresentou
como poeta, já que naquela época eu frequentava o Grêmio Literário Castro
Alves. Hoje, relembrando a cena, presumo que tenha havido um aviso prévio de
minha chegada, pois ninguém esboçou surpresa. Já havia até uma cadeira
estrategicamente colocada e o Alexandre falou: "Senta aí!"
Aqui começa exatamente a experiência do fã no meio dos seus
ídolos. Na parede à direita havia dois pôsteres: um do show do Bill Haley em Porto
Alegre, que teve abertura do Inconsciente Coletivo, e uma foto pequena em preto
e branco do rosto de Alexandre tocando sua harmônica à la Bob Dylan. Alexandre
estava sentado à minha direita. João Antônio e Ângela estavam de pé à minha
frente, de costas para a janela. À minha esquerda, também de pé, estava um
rapaz alto e magro com aparência mais jovem do que os demais, com um baixo
plugado. Esse eu não conhecia. Perguntei (vou transcrever as falas como foram
ditas, sem corrigir erros de concordância): "Tu é do conjunto,
também?" Ele respondeu: "Tô entrando..." Era o Calique, que no
futuro se destacaria como compositor de jingles e regente e integrante
esporádico do Canto Livre.
Após a minha recepção e acomodação (eu lembro que era uma
tarde fria e eu estava com um casacão cinza horrível que caía sobre as minhas
pernas), a primeira a retomar o ensaio foi Ângela. Ela estava segurando uma
escaleta que depois acabaria deixando de lado. E falou: "Tá, eu não sei se
é lá lá lá...", cantarolando o
trecho que deveria tocar. Aos poucos eles foram se achando. Pela introdução com
flauta e harmônica, reconheci a música: "Salve o Rei", que a
Continental já vinha rodando havia alguns dias. João Antônio tinha apenas
alguns compassos para largar a flauta e colocar o violão a tiracolo bem a tempo
de tocá-lo. Quando Alexandre começou a cantar ("Pequena cidade entre
montanhas..."), tive uma das sensações mais incríveis de minha vida como
apreciador de música: a de escutar a voz que eu ouvia todas as noites no rádio
saindo da garganta do sujeito ao meu lado! Eles executaram a música tal e qual
eu a conhecia, só que não era em rádio nem em teatro: era eu ali, no meio
deles, em som direto, "surround natural", um verdadeiro show
particular! Acho que nem eles podiam imaginar o que eu sentia naquele momento.
E eles tocaram "Salve o Rei" diversas vezes. Um
deles, acho que o João Antônio, falou brincando que eu iria enjoar da música.
Isso, é claro, estava fora de cogitação. Aí ele perguntou se eu a conhecia, eu
disse que sim, a Ângela completou "claro, toca no rádio", e eu
comentei: "Eu estava esperando, aliás, o Bizarro vai gravar aquela música
ou não?" Aqui, uma explicação: eu me referia a uma matéria que
havia saído na Zero Hora alguns meses antes, assinada por Juarez Fonseca. Ali
eram citados alguns versos de "Salve o Rei" antes de a Continental
começar a divulgar a música – daí o "estar esperando". E o mesmo
texto informava que eles haviam composto "Dama da
Noite", mas que era densa demais. "A gente fez a música, mas não
podia tocá-la", teria dito Alexandre para Juarez. Então a matéria
acrescentava que a composição "sairia às ruas" (entenda-se: seria gravada
na Continental) pelo grupo Bizarro. Mas até então, nada. Alexandre disse que o
Bizarro tinha prometido gravar. "Que música?", quis saber Calique. Quando
Alexandre respondeu "Dama da Noite", o baixista comentou que a
adorava. "Era bem pra eles aquela música", comentou Alexandre. Depois
completou: "Não tem nada a ver conosco." Eu fiz a indagação óbvia:
"Então por que fizeram?" Ficou no ar um clima de "pois é" e
Ângela resumiu: "Saiu..." (É curioso que, entre as últimas músicas do
Inconsciente Coletivo, havia algumas mais pesadas, como "Canteiros de
Tramandaí", "Velhas Mentiras" e "Camarada".
Considerando os novos rumos que eles buscariam, fica difícil imaginar que eles mesmos não conseguiriam interpretar uma composição própria.)
Outra canção que eles ensaiaram naquela tarde foi
"Êxodo Rural". Essa eu não conhecia. Perguntei se já tinha sido
divulgada na Continental e eles confirmaram que não. Calique disse, com ênfase,
em tom de brincadeira: "I-né-di-ta!" João Antônio emendou: "Tás
ouvindo em primeira mão!" O mais incrível é que eles falaram isso despretensiosamente,
talvez sem imaginar que era exatamente
o que eu estava sentindo: emoção e privilégio por estar conhecendo uma música
do Inconsciente Coletivo antes de todos os ouvintes da Continental! Bem...
quase todos. Depois a rádio começou a tocar "Êxodo Rural" numa
gravação ao vivo do show de Passo Fundo, de forma que, quem esteve lá (como
minhas primas), já a tinha ouvido.
"Salve o Rei" e "Êxodo Rural" foram as
duas únicas músicas realmente ensaiadas
naquela tarde, mas eles fizeram trechos de várias outras. Como, por exemplo, a
introdução de "Fadas Douradas", com Calique e João Antônio tocando
flautas em uníssono (como fariam novamente no show "Sul, Primeiros
Passos", que será o tema de meu terceiro texto sobre o grupo). Já naquela
época eu tinha uma tendência incontrolável de fazer piadas infames, e não resisti.
Perguntei ao Calique: "Tu é gremista ou colorado?" Intrigado, ele
respondeu: "Colorado, por quê?" Aí eu disse: "Ah, então tu
pode tocar flauta!" Alguns riram, acho que mais pela surpresa de eu ter
feito a piadinha do que por ela ter ou não graça. Calique confirmou:
"Tranquilo..." Em outro momento, Alexandre começou a interpretar
"Viola em Punho": "Levanta o sol, levanto cedo / vou cantando
campear / levo um beijo em minha testa / de Maria a me esperar". Nesse
ponto Calique interrompeu dizendo que "Ana Rita" ficava melhor. Eu
nem sabia que a música tinha essa variação na letra. Conhecia
"Maria", mesmo, da rádio Continental. Mas foi a "Ana Rita"
que eles cantaram em dezembro, no 4º e último Vivendo a Vida de Lee.
Como eles já estavam com disco anunciado, perguntei quando
iriam gravar. Se não me engano a resposta foi "mês que vem". Mas nas
lojas, mesmo "só em novembro", disse Alexandre. "Dezembro",
emendou Ângela, mais realista. Comentei que, nos últimos dias, a Continental só
tocava "Voando Alto". Embora não tenha explicado a eles, eu
estranhava porque era uma das composições mais antigas do grupo e havia outras
que mereceriam divulgação. Alexandre comentou, num tom meio contrangido:
"É uma musiquinha legal, mas agora já enjoou um pouco..." Na verdade
eu desconfiava – e depois isso se confirmaria – que eles escolheriam essa para
o lado A do disco que lançariam.
Lá pelas tantas eles entraram numas de queimar umas palhetas
brancas com cigarro, fazendo um furo no meio. "Por que isso?",
perguntei. "Palheta marca Inconsciente Coletivo", brincou Ângela.
Como bem observou Calique, a fumaça resultante exalou um cheiro de Vick
Vaporub. Em outro momento, Alexandre começou a cantar uma música sozinho ao
violão. "Você me deu a luz... quando eu estava cego..." Lembro também
da expressão "poemas antigos" na letra. Perguntei se eles iriam
gravar a música (na rádio Continental, eu queria dizer) e ele disse, "não,
tamo fazendo ainda". E já tinha nome: "Madame Solidão". Mas
nunca mais a ouvi.
Na saída, eu e Calique viemos juntos de ônibus para o
centro. No momento em que deixamos a casa do Alexandre eu disse a ele:
"Sou ligado no som deles". Curioso eu ter tido "deles",
pois Calique agora era um "deles", também. Ele quis saber como eu
tinha conseguido o endereço e eu expliquei a amizade de meus pais com os de
João Antônio (acho que nem hoje eu seria capaz de pesquisar o endereço de um
ídolo e aparecer de surpresa!). Ele falou: "Enquanto eu não estiver
fazendo vocal e tal, não vou me sentir Inconsciente." "Bom, tu tá entrando
agora..." "Mas em Passo Fundo, já fui." Em seguida ele comentou
que, no início, achava o som do Inconsciente Coletivo meio imaturo, mas que se
surpreendeu mesmo foi quando eles apresentaram "Sobre a Guerra" no
Musipuc. Lembro que já estávamos no ônibus quando observei que, na gravação de
"Voando Alto" que tocava na Continental, a voz do Alexandre mal
alcançava a "caída" no final do verso "sem o som do relógio do lado". Ele fez uma cara séria e
disse: "Isso tem como corrigir." Coincidência ou não, quando saiu o
disco, a melodia estava alterada, com duas notas bem distintas salientando as
sílabas "la-do". Calique sugeriu também que eu viesse assistir a um
ensaio em véspera de show, quando o grupo estava mais afiado. Mas nunca mais
falei com eles. Ou melhor: falei com Calique décadas depois, no estúdio em que
ele trabalhava, mas ele não lembrou de mim. Para eles, foi algo corriqueiro,
mais um entre tantos ensaios. Para mim, foi uma experiência marcante que está
bem viva em minha memória.
3 Comments:
Esse post me lembrou o filme "Almost Famous", onde vc, claro, é o menino-jornalista que viaja com a banda...
:) Adorei. Carolina
Quem me dera ter-me tornado um cara tão lendário quanto o Cameron Crowe! Ele, sim, era jornalista desde jovem.
Bah, o homem é uma arca de memórias.
Eu não sabia que Bill Haley tinha se apresentado em Porto Alegre.
Quando saí esse livro de memórias mesmo?
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