Gilberto Travi e o Cálculo IV
Foi no verão de 1976 que ouvi pela primeira vez na Rádio Continental um refrão que repetia: "Querem esconder os problemas do planeta, querem esconder os problemas do planeta..." Chamava-me a atenção que a música rodava praticamente todas as noites, no "Mr. Lee em Concerto". Isso fazia parte da estratégia do programa de divulgar o trabalho de músicos gaúchos que nem disco tinham, mas que gravavam suas composições no próprio estúdio da rádio. Depois vim a saber que a canção se chamava "Rota 75" e era interpretada por Gilberto Travi e o Cálculo IV. Na mesma época, Mr. Lee (Júlio Fürst) rodava também outra divertida criação do grupo, "Tubarão", aproveitando o sucesso do filme homônimo. "Saiu de Torres, foi pra Tramandaí... (...) Um tubarão, Deus do Céu, um tubarão..."
No dia 30 de abril de 1976, Gilberto Travi e o Cálculo VI se apresentaram na primeira de duas noites do concerto "Vivendo a Vida de Lee", no Teatro Leopoldina. Eu estava na plateia. Achei Gilberto muito divertido, uma figura, gordinho e bem humorado. Gostei também das três meninas que faziam vocal, que inclusive foram aplaudidas no trecho que cantaram sozinhas em "Operário Padrão". Mas o momento hilário da apresentação foi "Margô", que jamais poderia tocar no rádio, na época. Era o lado humorístico de Gilberto que sempre se manifestava.
Em função da divulgação do concerto, o programa de Mr. Lee abriu espaço nas segundas-feiras para um bate-papo com os músicos. E manteve essa prática por diversas semanas depois. Eu escrevi uma carta fazendo algumas perguntas a Gilberto Travi e elas foram respondidas no ar pelo próprio músico. Há alguns anos mencionei esse fato a ele no Orkut e ele disse que lembrava. Acredito mesmo que não tivesse esquecido, pois eu o coloquei numa saia justa: perguntei quem era a Margô do "djúbi djúbi". Ele começou dizendo que era uma moça com quem ele saiu e "djúbi djúbi djúbi", depois contou uma historinha. Minha segunda pergunta era sobre as moças do vocal do grupo. Ali fiquei sabendo que elas se chamavam Meg, Beth e Regina.
Em outro desses programas, um ouvinte mandou uma pergunta sobre como surgiu o Cálculo IV. Gilberto contou que havia participado sozinho de um Musipuc e, nessa mesma edição, Meg, Beth e Regina também concorriam com uma música de autoria da primeira. Ali eles se conheceram. Tempos depois ele recebeu uma carta delas perguntando se ele toparia cantar uma composição de autoria delas. Marcaram um encontro para acertar os detalhes, começaram a cantar juntos e viram que funcionava. Depois o músico e radialista Beto Roncaferro entraria no baixo.
Em 1976 a multinacional Warner chegava ao Brasil, garimpando novos talentos. Contratou, por exemplo, o grupo Impacto, que já tinha uma longa tradição nos bailes de Porto Alegre. Pois em um dos programas de Mr. Lee, Gilberto chegou a anunciar que ele e sua banda também estavam com a Warner. E isso foi amplamente divulgado na época. Mas não se concretizou basicamente por dois motivos. Primeiro: Gilberto não pretendia se mudar de Porto Alegre, como queria a gravadora. Segundo: a oferta era somente para o músico e ele não se via como um solista. Certa vez, num dos bate-papos do programa, ele informou que estaria fazendo show em um clube. Quando Júlio quis saber se era só ele ou o também o Cálculo IV, Gilberto foi bem enfático: "Não, todo mundo. Eu sem o Cálculo IV não sou ninguém."
No quarto e último "Vivendo a Vida de Lee", em dezembro de 1976, Gilberto mostrou um tema instrumental que a Continental já vinha tocando. Explicou que se chamava originalmente "Estrume Mental". Depois encurtaram para "Estrumental" e com esse nome foi divulgado pela primeira vez no programa de Mr. Lee. Mas a gravação era tão caprichada que todos acharam que não merecia um título satírico e sim um "nome mais científico". E assim foi rebatizada de "Rua da Praia". Essa, mais "Visão" e "Monumento à Poluição" foram apresentadas também em vídeo no programa de Fernando Vieira na TV Difusora canal 10. Essas fitas ainda existem?
Com o fim do "Mr. Lee em Concerto", os músicos que eram divulgados no programa perderam sua vitrine fixa, não só no rádio como nos shows coletivos. O que alguns tentaram fazer em 1977 foi "se promover" a artistas de show próprio. Hallai Hallai e Inconsciente Coletivo, por exemplo, realizaram apresentações antológicas, ambas com Fernando Pezão na bateria. Pois Gilberto Travi e o Cálculo IV também brindaram seus fãs com uma noite só deles, no dia 23 de abril, um sábado, na Assembleia Legislativa. Meg havia saído, mas o show teve a participação especial do então namorado de Beth, João Antônio Araújo (do Inconsciente Coletivo), na guitarra. Apesar do esmero na produção e dos elogios do público, o esforço não deve ter trazido os resultados esperados, pois os três grupos citados se desfizeram em questão de meses. E o surgimento dos Discocuecas, de certa forma, foi a pá de cal, pois deles faziam parte o próprio Gilberto Travi, Beto Roncaferro (ex-Cálculo VI), João Antônio Araújo (ex-Inconsciente Coletivo) e Júlio Fürst (ex-Mr. Lee). Hallai-Hallai e Inconsciente Coletivo voltariam com novas formações, mas os tempos eram outros. Uma curiosidade é que a semente dos Discocuecas foi plantada com as canções humorísticas de Travi. Nos tempos de Mr. Lee, ele pensava em montar um show que se chamaria "Gilberto Travi do Sério ao Infinito".
A única gravação de Gilberto Travi e o Cálculo IV lançada em disco é a faixa "Monumento à Poluição", que está no CD que acompanha o livro "Continental, a Rádio Rebelde de Roberto Marinho", de Lucio Haeser. Mas outras interpretações do grupo podem ser ouvidas no material captado diretamente do rádio pelo ouvinte Luiz Juarez Pinheiro, que hoje circula entre os colecionadores (acho que vou apelidar essas fitas de "The Juarez Tapes"). E com certeza devem existir mais preciosidades guardadas no arquivo do ex-técnico da Continental Francisco Anele Filho. Esperamos que sejam lançadas um dia. Existe ainda uma entrevista inédita com Gilberto Travi que foi realizada pelo músico e pesquisador Rogério Ratner, como subsídio para um futuro livro. Também torcemos para que seja divulgada oportunamente.
A foto acima é do blog do Necão Castilhos, ex-integrante do Hallai-Hallai. Ali vemos Gilberto Travi ao violão, à direita, juntamente com outros músicos dos shows de Mr. Lee, entre eles Zé Flávio e o próprio Necão.
4 Comments:
Olá, Emílio. Me chamo Felipe Lahutte Travi, sou o filho mais novo do Gilberto e gostaria de agradecê-lo pelo post sobre meu pai. Aprendi coisas que não sabia sobre meu próprio pai e sua carreira como músico, tenho certeza que meu irmão também se interessará pela leitura. Gostaria de saber se há um modo de entrares em contato com o homem citado no final do texto que conduziu uma entrevista não divulgada com meu pai, pra mim seria muito legal ter acesso a este material. Favor entrar em contato em fltravi@gmail.com.
Um abraço,
Felipe
Emílio, esta notícias foi muito triste para todos que tiveram o prazer de conviver com o a alegria do Gilberto Travi.
Depois que terminou o "Vivendo" , nunca mais encontrei o Gilberto.
Lembro de um dia dentro dos estudios da Continental , em que o Gilberto chegou com um banjo comprado nos Estados Unidos.
Naquela noite , pedimos emprestado o banjo e gravamos um Jingle pro Júlio com toda energía daquele banjo americano autêntico.
O Gilberto sempre carinhoso e cordial , não tinha ainda feito nem um acorde naquela jóia, mas nos emprestou na maior alegria e ficou acompanhando dentro do estudio "B" toda gravação que terminou na madruga.
Gilberto Travi ,foi muito importante dentro do movimento "Vivendo a Vida de Lee", era a alegria personificada em todas as viagens que fizemos com o prazer de sua companhia.
Na vida tudo deixa de ser,mas a alegria de Gilberto vai permamnecer para sempre em minhas lembranças.
Viva Gilberto Travi!
Um grande abraço/
do Necão Castilhos*
Felipe, obrigado pela visita e muita força a ti e à tua família neste momento. Já encaminhei tua mensagem para o Rogério.
Necão, muito legal o teu depoimento. Nada contra os Discocuecas, mas pra mim eles jamais serão tão importantes quanto tudo o que rolou nos tempos de Mr. Lee. Aliás, assim como o Hallai-Hallai tocava "Quando Viajar Pro Norte" de Fernando Ribeiro e Arnaldo Sisson nos shows, Gilberto Travi e o Cálculo IV tocavam "Estado de Espírito", também da mesma dupla.
Muito legal, sensacional e atemporal.
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