quarta-feira, março 22, 2006

O medo de ser chato

Não sei se é porque desde a infância uma das "leituras de banheiro" da família era o "Tratado Geral dos Chatos", de Guilherme de Figueiredo, mas um de meus maiores medos é o de ser chato. Não vou dizer que eu não seja ou nunca tenha sido. Que o digam os donos de lojas de discos raros onde eu batia ponto praticamente todos os dias no final dos anos 80. Talvez por isso eu goste tanto da Internet: posso acessar minhas páginas preferidas quantas vezes quiser sem que ninguém precise abrir a porta pra mim, me enxergar ou me atender. Um site nunca se chateia.

Nessa de não querer ser chato, perdi a chance de fazer contato com dois grandes ídolos meus. Agora que criei uma comunidade sobre Mario Quintana no Orkut, seria ótimo poder dizer a todos que o conheci pessoalmente. Mas, para não ser chato, apenas o vi de perto várias vezes. Eu o enxergava seguidamente caminhando pelo Centro de Porto Alegre. Além disso, eu estava presente em uma homenagem a ele pelos seus 70 anos no Grêmio Literário Castro Alves em 1976. No mesmo ano, compareci à sessão de autógrafos do primeiro livro do poeta Rossyr Berny, "O Homem Autômato". Mario havia escrito o prefácio e estava lá, tranqüilo e bem-humorado. Ao estender seu exemplar para Rossyr autografar, disse, bem sério: "Mario Quintana". Teria sido muito fácil eu me aproximar dele, como tantos faziam, e me apresentar. Mas eu imaginava que ele não deveria gostar desse tipo de atitude.

O outro caso foi pior ainda. Lembro que, quando um amigo meu se tornou comissário de bordo, falei para ele: "Se um dia David Bowie estiver no avião, tenta conseguir um autógrafo pra mim." Claro que a ética profissional não lhe permitiria fazer isso, mas eu pedi mesmo assim. Mas o mundo deu voltas e quem acabou viajando no mesmo avião que Bowie fui eu. Em 1997 eu fui aos três shows que ele fez no Brasil e acabei embarcando no mesmo vôo que ele de Curitiba a São Paulo. Não o vi, mas o relações públicas dele sentou do meu lado. Pensei comigo mesmo: não vou bancar o fã alucinado. Sou jornalista, não posso perder a linha. E cometi a burrada do século: deixei para tentar conseguir o autógrafo pouco antes da aterrissagem, quando estavam todos de cinto afivelado. Ainda falei com o sujeito do meu lado, para ver se poderia fazer o contato depois do pouso, mas ele disse: "Vai ser difícil. Quando o avião parar, David vai sair rapidamente." Muito depois, no Rio de Janeiro, ele conseguiu para mim o autógrafo de David Bowie na capinha do CD, mas até hoje tenho uma ponta de dúvida se a assinatura é autêntica. Paguei o mico de estar no mesmo avião em que Bowie e não falar com ele, mas pelo menos não fui chato.

Recentemente, apareceu em um grupo de discussão sobre música o lendário Ken Scott, que tem em seu currículo discos dos Beatles (como engenheiro de som), Supertramp e David Bowie (como produtor) entre outros. Ele chegou a me mandar uma mensagem particular agradecendo um elogio e eu respondi dizendo que teria mil perguntas para fazer a ele, mas iria poupá-lo. Só que eu não era o único: vários integrantes do site queriam saber mais informações. Para satisfazer a todos, um dos participantes criou um tópico para que se postassem perguntas que ele depois repassaria a Ken por telefone. Aí, senti-me à vontade para submeter um longo interrogatório. Depois, fiquei sabendo que Ken deu preferência às perguntas técnicas no papo por telefone. Mas, para não decepcionar, respondeu pelo site mesmo às perguntas não abordadas na conversa. E assim, meus longos e detalhados questionamentos mereceram respostas esclarecedoras como "sim", "não" e "não lembro". Ao final eu tinha escrito: "É melhor eu parar antes que continue eternamente". Para meu desespero, ele completou: "Concordo."

Às vezes alguém me informa seu telefone, mas eu só ligo em último caso. E mesmo assim ainda fico pensando: será que não vou atrapalhar? Qual será o melhor horário para telefonar? De manhã? Não, posso acordá-lo. Perto do meio-dia? Não, vou atrapalhar o almoço. À tarde? Não, vai ser bem na hora da sesta. Ao final da tarde, talvez? À noite? Não, eu não sei a que hora ele janta e vou ter o azar de tirá-lo da mesa. No fim-de-semana? Não, vou atrapalhar o descanso ou a reunião com a família. E se eu mandasse um e-mail? Não, já mandei um e vai parecer insistência. Acabo ligando. "Você estava almoçando? Você estava dormindo? Não estou atrapalhando? Não interrompi nada? Não prefere que eu ligue outra hora? Qual a melhor hora para ligar? Tem certeza que não estou incomodando? Não quero ser chato..."

Muitos já escreveram sobre os chatos. É um tema rico e fácil de ser explorado. Está na hora de alguém redigir um manual que, este sim, seria muito útil: "Como não ser chato". Ou: "Como ser sociável sem ser chato". Isso, sim, seria um desafio interessante.

3 Comments:

Blogger Olívia Lemes said...

oi Emílio, gostei tanto do seu outro texto que li este também e adorei! Olha, vc escapou de ser chato, mas foi "tonto" (dito carinhosamente, ok?), porque se eu entro num avião com o david bowie, não saio dele sem tacar até bolinha de papel na cabeça dele se preciso for para ele me olhar! nossa senhora, só de pensar meu coração já pára! Mas entendi seu ponto e fiquei tocada pelo seu apelo. vc já leu um livro chamado "como fazer amigos e influenciar pessoas" do Dale Carnegie? http://en.wikipedia.org/wiki/Dale_Carnegie
Ele tem outros títulos que podem ser até mais a ver com o seu apelo http://en.wikipedia.org/wiki/How_to_Stop_Worrying_and_Start_Living

mas o primeiro que citei, li e amei. Livro de auto-ajuda é uma porcaria, mas este é tão meigo, que não pude deixar de me encantar com a leitura. É claro que serve apenas a pessoas de boa índole, que pelos inimigos são classificados de inocentes, mas, como vc parece ser alguém q tem algum carinho pelo ser humano, acho que gostará. Uma dica rápida? se a pessoa atendeu o telefone é porque ela pode falar/escutar, senão ela NÃO ATENDERIA, como faço durante almoço e outros momentos menos públicos. Se ela ficou curiosa, é pq tem espaço na vida dela pra saber algo q ela ainda não sabe e esse algo pode perfeitamente ser vc! vc se encaixa! aposto q nem o David Bowie está satisfeito com tudo o q viu e ouviu nessa vida, quem sabe se vc não seria uma amizade que ele teria adorado ter feito? outra coisa, outro "no fundo", já vivi o suficiente para perceber que, "no fundo", o q faz uma pessoa achar vc chato ou não é ela gostar ou não da sua companhia e isso depende na realidade do universo e não de vc! quero dizer o seguinte, acho q o q faz A se dar bem com B (achá-lo legal é só a interpretação subjetiva q ele dá para o fato) é que A e B provavelmente seguriam histórias parecidas ou afins, têm elementos químicos que combinam ou outros fatores quaisquer que nem sempre vemos a olho nu, mas que certamente existem e pesam. Então, arrisca, quem sabe petisca! Ademais, se o David Bowie te achar chato,ele que se dane! abraços
Luciana

3:24 PM  
Blogger Emilio Pacheco said...

Valeu a dica, estou numa fase de ouvir audiobooks e esse já estava em minha "wish list", então vai ser o próximo!

11:30 AM  
Blogger Emilio Pacheco said...

Quanto ao David Bowie, pode ter sido um mico perder a chance de falar com ele no avião, pelo fato de ele ser um de meus maiores ídolos na música. Mas, em termos de AMIZADE, as pessoas próximas, que fazem parte do meu mundo em carne e osso (ou mesmo numa proximidade virtual), serão sempre mais importantes.

11:51 AM  

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