terça-feira, agosto 01, 2006

O artista cansado

(Publicado originalmente no International Magazine.)

Imagine o seu ídolo atingindo um momento crítico da carreira. Ou mais do que isso: de sua vida. Desde a infância ele sonhou em ser famoso. Ouvia o rádio, via TV e desejava estar lá, no ar, visível e audível para o mundo. Pensava no dia em que caminharia na rua e seria reconhecido. Daria autógrafos. Faria shows. Veria seus discos nas lojas. Teria todas as garotas que quisesse.

Um dia, o sonho acontece. É bom demais para ser verdade. Ele agora é um ídolo mesmo. Um Artista. As fãs querem um pedaço dele. Os discos vendem aos borbotões. No rádio, não se ouve outra coisa. No palco, ele canta e a platéia acompanha cada sílaba da letra que ele compôs. Nos bastidores, a maratona de tietes parece coisa de filme. O paraíso existe. O Artista é um ídolo. O ídolo é um Artista.

Por algum tempo, tudo é uma curtição. Os lugares que antes ele freqüentava incógnito agora se abarrotam de gente quando ele entra. Por onde o Artista passa, são autógrafos, abraços e correrias. Às vezes ele lamenta que não possa mais ter os seus momentos de sossego no barzinho da esquina. Ou olhar com calma os CDs em suas lojas preferidas. É o famoso “preço da fama”. Corre de um hotel para outro, mas no palco ele se realiza. No início, ao menos. Depois de um certo tempo, até isso vira rotina. Um script que ele já sabe de cor.

Um dia, o Artista se apaixona. Resolve casar. Os fãs, é claro, acham uma grande bobagem. E logo aquela feiosa, com tantas mulheres lindas a seus pés... Mas o Artista já cansou de rostos bonitinhos e corpinhos perfeitos que, além de estarem fartamente disponíveis, ainda vêm acompanhados de cabeças vazias. Agora ele quer uma mulher com quem possa se relacionar em outros níveis, inclusive intelectualmente. Alguém que o enxergue como ser humano. Quem sabe, uma mãezona para dar um colinho, de vez em quando. Ou até uma groupie devota e assumida que levante a sua auto-estima. Não importa. Ele achou essa mulher. Danem-se os conselhos do empresário, que pede que o namoro permaneça em segredo. Danem-se os fãs. Ou melhor: as fãs.

O Artista quer desfrutar algum tempo com sua mulher, mas não consegue: vem turnê pela frente. Ele pensa em colocá-la no grupo para tocar teclados com dois dedos e fazer backing vocals em microfone desligado, mas acha que a tramóia é óbvia demais para passar despercebida. Paciência. Quando podem, eles se encontram. Às vezes ela o acompanha nas viagens. E a união gera filhos. Eles agora são uma família. A família do Artista.

Depois da turnê, ele pensa em passar um fim-de-semana na praia ou na serra com a família. Mas não pode: a gravadora lembra que ele está devendo um disco. Ah, é mesmo... Um disco... Mas ele não compôs músicas suficientes. No tempo de solteirinho, cada noitada era tema para uma canção. No começo do grande amor, ele criou verdadeiras obras-primas. Mas passou. A paz e a placidez da vida familiar lhe tiraram a angústia inspiradora. Mesmo assim, ele vai para o estúdio, pensando nos sorrisos do filho que a babá está curtindo por ele. Pensa em cantar sobre isso, mas não consegue. Ao mesmo tempo, já estão lhe cobrando a próxima turnê.

Sai o disco. A crítica não perdoa. O Artista está perdendo a inspiração. Ora, isso ele já sabia antes de começar a gravar. Não precisava que a imprensa lhe dissesse. Era o que ele próprio quereria ter dito para a gravadora, se ousasse. Mas não há tempo para pensar nisso: vêm mais shows pela frente. Desta vez, sua esposa não o acompanha. Fica com os filhos. A solidão começa a cobrar a conta. As tietes voltam a ter aparência de maçã nas mãos de Eva. Mas o que ele não esperava é que a tentação também fosse bater à porta de sua própria casa, enquanto ele excursionava. A essas alturas ele já nem sabe dizer quem tomou a iniciativa, mas o fato é que o seu casamento acabou.

Pode haver um lado bom nisso, não? Livre novamente? Mas não da fama. Continua o assédio. Antes ele gostava. Agora, serve apenas para afogar as mágoas. Encontra outra mulher. Mais um disco. Mais uma turnê. Há quanto tempo ele não vê os filhos. Estúdio. Palco. Hotel. Namorada. Bastidores. Tietes. Hotel. Palco. Hotel. Palco. Hotel. Palco. Empresário cobrando. Gravadora cobrando. Namorada cobrando.

Um dia, ele dá um basta. Chega! Anuncia a seu empresário que não vai mais fazer shows. O empresário não aceita. De jeito nenhum. No auge da fama? Com a perspectiva de mais uma excursão mundial pela frente? Mas o Artista não quer saber. Ninguém mandou fechar datas sem consultá-lo antes. Avisa também à gravadora que não vai renovar o contrato. Sem mais discos! A notícia chega aos fãs, que mal podem acreditar. Que sujeito mais burro! Com todo esse talento, vai pendurar as chuteiras? Deixar de gravar discos, fazer shows e todas as outras coisas geniais a que só os artistas têm direito? E nós, que tanto gostamos do seu trabalho, como ficamos? Isso não é justo! Mas nada o demove da decisão.

E assim, para perplexidade geral, o Artista decide parar. Talvez reconstrua uma família e vá viver numa fazenda, onde possa plantar seus amigos, seus discos e livros e nada mais. Ou quem sabe um dia sinta a falta das luzes e do assédio e ressurja das cinzas como o messias para a turma de sua geração. Ou ainda, poderá sumir da mídia para virar lenda e nunca mais recuperar totalmente a paz desejada. Fãs hão de peregrinar até sua porta, paparazzi o fotografarão de surpresa buscando o jornal e, horror dos horrores, empresários ousarão profanar seu retiro com ofertas milionárias para uma volta triunfal. Mas o Artista não quer nada disso. Os fãs e gravadoras que tanto pedem seu retorno não sabem o que estarão lhe roubando se conseguirem forçá-lo a essa opção. Por isso ele resiste, se fecha, se resguarda, movido por uma ânsia de paz e anonimato que os simples mortais talvez nunca venham a compreender.

(Esse texto de ficção é em homenagem a Cat Stevens, Syd Barrett, John Lennon, Arnaldo Baptista e tantos outros que um dia resolveram dar um tempo - alguns em definitivo, outros pensando em voltar.)