sexta-feira, setembro 30, 2005

Edições de entrevistas

Uma questão que um dia ainda gostaria de debater com jornalistas experientes é a polêmica das entrevistas editadas. Em outras palavras: é anti-ético o veículo publicar só o que lhe interessa? Se não houver distorção nem uso indevido do depoimento em matéria de enfoque prejudicial ao entrevistado, há o que reclamar?

Quase sempre existe um choque de interesses numa entrevista. O entrevistado quer se promover, sair bem na foto (tanto no sentido literal quanto metafórico), demonstrar sua inteligência e exaltar suas conquistas e vitórias. Mas o jornalista nem sempre comunga desse objetivo. Muitas vezes, o entrevistador quer garimpar alguma revelação de impacto ou explorar um aspecto mais controverso do entrevistado. Quando a entrevista é publicada, o entrevistado reclama que não saiu uma só linha sobre o seu desempenho exemplar na universidade, sobre o faturamento espetacular de sua empresa ou suas articuladíssimas opiniões sobre o futuro da humanidade. Em vez disso, deram chamada de capa para o fato tão insignificante de ele já ter transado com um homem. Uma vez só!

Uma tática muito usada pela grande imprensa é deixar o entrevistado falar à vontade, contando a história de sua vida nos mínimos detalhes. A conversa pode se estender por vários dias. Depois que ele estiver "amaciado" e já tiver dito tudo o que queria sobre sua irrepreensível pessoa, acabará entrando em assuntos mais delicados. Que, obviamente, era o que o repórter queria ouvir desde o início. Quando chega o momento de editar a entrevista, esses trechos ganham destaque enquanto o restante muitas vezes é descartado. Que um entrevistado se decepcione com esse tipo de prática é até compreensível. Mas, se as palavras publicadas realmente foram ditas, ele pode culpar a edição pelo seu próprio depoimento? Não teria sido mais prudente evitar certos temas para não se arrepender depois?

Em 1978, Arthur Bell, da Playboy americana, foi procurado por uma intermediária que o avisou que uma pessoa famosa havia feito uma cirurgia de troca de sexo e, depois de anos se escondendo das câmeras, queria revelar sua nova identidade. Após acertados os detalhes, Bell teve a chance de colher um dos depoimentos mais bombásticos já publicados pela revista: o de Wendy Carlos, até então conhecida como Walter Carlos, gênio do sintetizador moog e autor do clássico "Switched on Bach". Embora perceba-se nas entrelinhas, especialmente no texto de introdução, que foi usado o já citado método de "ouvir mais para publicar menos", Carlos forneceu todos os detalhes sórdidos de sua transformação, dos traumas de infância à adaptação pós-operatória, passando pelas situações embaraçosas da fase de transição (enquanto não tirarem a página do ar, a entrevista em inglês pode ser lida aqui). Hoje, Wendy repudia o assunto explicitamente em seu site e ainda cita "os editores de Playboy" em uma "lista de desprezo" para a qual reservou uma página específica.


No ano passado, a revista Isto É publicou uma entrevista com João Ricardo, líder dos Secos e Molhados. Suas declarações sobre os ex-colegas de grupo da fase clássica não foram bem recebidas pelos fãs de Ney Matogrosso. Depois o próprio João renegou a matéria no site oficial do conjunto, argumentando que a edição foi maldosa. No Orkut, anunciou-se informalmente que a íntegra do depoimento de João seria postada na página dos Secos, mas até agora nada se concretizou. De qualquer forma, o que todos se perguntam é no que uma edição mais ampla atenuaria as afirmações que efetivamente foram impressas. Só lendo para saber. Talvez, diluídas num contexto maior, não chamassem tanto a atenção. Aí voltamos à pergunta inicial: é anti-ético publicar só o que interessa ao veículo?

Só o que se pode concluir com certeza é que, quem não quer ver suas palavras publicadas, deve calar a boca. Do contrário, como se dizia nos anos 70, "falou, tá falado". O entrevistado pode e deve processar a imprensa em casos de distorção, difamação, calúnia ou obtenção de depoimento por meios escusos para uma reportagem que o irá expor negativamente. Mas não vejo no que uma entrevista publicada em formato "pingue-pongue" (pergunta seguida de resposta) possa ser condenada apenas por não conter a íntegra da conversa. Não se pode confundir a frustração da expectativa do entrevistado com falta de ética. O objetivo de uma entrevista é atrair o leitor, não o de enaltecer alguém. Esteja ciente disso sempre que aceitar falar para um repórter. E não diga nada que não queira ver publicado depois.