terça-feira, abril 12, 2005

A crase

(Atenção: a nova ortografia de 2009 NÃO extinguiu o sinal de crase! Muita gente está chegando aqui querendo saber sobre isso. Outra observação importante: é impossível saber se um "a" tem crase sem saber o que vem antes e depois do "a". Por exemplo: "a amiga" tem crase? Depende do que vem antes! "Assistir a" tem crase? Depende do que vem depois! Também tem gente aos montes chegando aqui fazendo esse tipo de pergunta no Google. )

Às vezes penso em cursar a faculdade de Letras só para ensinar crase. Não entendo que tanta dificuldade as pessoas têm em saber se um "a" tem crase ou não. Tá, também não vou dizer que seja tão fácil assim e que eu também não me atrapalhe às vezes. Mas as confusões que vejo por aí também não se justificam. Recentemente vi uma consulta na Internet. Um jornalista queria saber se "entrega de prêmio a jornalistas" tinha crase e justificava pelo fato de a palavra "jornalista" poder ser feminina. Ora, é claro que se fossem todas jornalistas mulheres, o certo seria "às jornalistas", no plural.

Acho que o método de ensinar é que deveria ser revisto. Ficar decorando regrinhas não leva a nada. O aluno aprende a recitar os macetes na ponta da língua e continua errando na prática. A regra é uma só: ocorre crase quando houver a junção da preposição "a" com os artigos femininos "a" ou "as" ou com os pronomes demonstrativos a, as, aquele, aquela, aquilo, aquiloutro, aqueloutro. Pronto! Quem conseguir entender isso não precisará decorar mais nada, não cometerá erros e sentirá a crase até quando fala.

Talvez uma das noções mais errôneas seja a de que a crase é um acento. Já ouvi muita gente dizer que tal nome ou palavra francesa "tem crase". Não! Aquele acento virado para a esquerda se chama, por padrão, "acento grave". Até a Reforma Ortográfica de 1971 (que entrou em vigor em 1972), era usado em português em palavras como "pràticamente", "matemàticamente", "sòzinho", enfim, palavras derivadas de outras que contivessem acento agudo (que é o virado para a direita, ainda hoje usado). Com a nova ortografia, restou ao acento grave em português apenas a função de indicar crase. Com isso, alguns desavisados pensam que crase é o nome do acento. E a tratam como uma mera questão de ortografia da palavra "a", sem realmente entender o fenômeno.

Lembro de uma prova sobre crase que fiz no segundo grau. Além de dizer se uma frase tinha crase ou não, precisávamos citar a regra. Que bobagem! Lembro que apareceu a expressão "passo a passo". Respondi que não havia crase porque inexistia o artigo "a" para fazer contração com a preposição. Essa é a única regra válida que conheço. Mas a professora considerou a resposta errada, porque eu teria que ter escrito: "Não há crase entre palavras repetidas". Ah, sim. Senão, vejamos:

Fui a pé da minha casa à casa do meu amigo.

Então? Essa frase é o pega-ratão perfeito para embananar o pobre decorador de regrinhas. Com um pouquinho de teimosia, consegui colocar uma crase válida entre palavras repetidas. Claro que a repetição da palavra "casa" é desnecessária. Vamos experimentar tirá-la para ver o que acontece:

Fui a pé da minha casa à do meu amigo.

Agora o decorador de regrinhas não entende mais nada, pois ele sempre soube dizer de cor a quem perguntasse que não há crase antes de palavras masculinas. Ele não enxerga nenhuma palavra feminina depois do "à" e jura pela Dona Matilde, a sua saudosa professora do primário, que essa frase não deveria ter crase.

Mais importante do que decorar os pecados da crase e outros macetes é saber a regência de verbos e substantivos. Especificamente, quais verbos são sucedidos pela preposição "a" e quais substantivos são antecedidos pelo artigo "a". Por exemplo: assistir, no sentido de olhar, pede a preposição "a". Assiste-se "a" alguma coisa. Já a palavra "luta" é antecedida do artigo "a". Assistir a + a luta = assistir à luta. Verbo ir: vai-se "a" algum lugar. Cuba: não tem artigo (não se diz "a" Cuba ou "o" Cuba). Ir a + Cuba = ir a Cuba. É tão fácil e, no entanto, ainda há quem faça da crase um mero ornamento da palavra "a".

É curioso que, em espanhol, não existe crase.* Em português dizemos: "Vou à farmácia". Em espanhol é "Yo voy a la farmacia". Nenhum nativo de língua espanhola fica em dúvida se deve escrever "a la" ou apenas "a" ou "la", então por que essa dificuldade dos brasileiros com a crase? Porque a encaram como um acento, ficam decorando regrinhas e não se preocupam realmente em entendê-la.



- * -

P.S.: Quando escrevi esse texto, ainda não havia lido o que ensina sobre o assunto o Professor Cláudio Moreno em sua página na Internet. E fico feliz de constatar que ele, que é realmente uma autoridade para discorrer sobre o tema, disse o mesmo que eu com outras palavras e muito mais propriedade. Vocês podem ler o que ele escreveu aqui, mesmo assim faço questão de citar um trecho que achei sensacional:

Ocorre que há dezenas de péssimos manuais, usados por professores de formação apressada, que tratam a crase como se fosse um sistema de regras determinadas por alguém - como se fosse uma lei, com artigos e parágrafos e incisos e casos especiais. Por causa disso, muitos se revoltam contra a crase, julgando-a uma imposição arbitrária; não poucos leitores já me escreveram perguntando quando é que vão "revogá-la"! Para piorar o quadro, esses manuais vivem chamando a atenção de seus desafortunados leitores (ou alunos) para os casos em que "a crase é proibida" [sic]!

Perfeito! Folgo em saber que há pelo menos um mestre - e um grande mestre - ensinando a crase de forma coerente.

*De vez em quando alguém chega neste tópico procurando se "existe crase em espanhol". Provavelmente querem saber se existe acento grave em espanhol. Pelo que acabei de pesquisar, não existe, mas sempre é bom consultar um professor desse idioma. Quando digo que não há crase em espanhol, refiro-me à junção da preposição com o artigo em uma única palavra. Nos casos em que escrevemos "à" em português, diz-se "a la" em espanhol. Por isso não ocorre crase. Mas acento grave em idiomas que não o português não tem nada a ver com crase. Como foi dito acima, crase não é o nome do acento.

6 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Não disse nada :(

8:34 AM  
Blogger Emilio Pacheco said...

Pelo contrário, isso é TUDO o que há para saber sobre a crase. Macetes só servem para confundir mais.

8:39 AM  
Blogger Unknown said...

Sei que é um post de DEZ anos atrás, mas saiba que você, senhor Emílio, me ajudou bastante com este esclarecimentos sobre a crase. Muito obrigado!

7:18 PM  
Blogger Eli (Beauty Blog) said...

Concordo muito. Aprendi o português de pequenina (minha língua materna é o espanhol), até tinha aulas de gramática na escola e fico muito chocada ao corrigir textos escritos por luso falantes (normalmente brasileiros) que não sabem usar a crase. No princípio pensei que talvez eu estivesse errada (afinal de contas eles eram nativos e eu não, e eu estava mais familiarizada com o português europeu) mas depois de consultar vários manuais descobri que estava certa, alguma vez tive até que justificar a minha corrição pois eles não aceitavam ou não entendiam onde estava o erro. Cumprimentos

6:54 AM  
Blogger Eli (Beauty Blog) said...

P.S: Temos crase em espanhol, sim: de + el = del, a + el = al, etc. A mesma coisa que em português. :-)

6:57 AM  
Blogger Emilio Pacheco said...

Certo, então existe crase em espanhol, mas não com a junção a preposição "a" com o artigo "la". Obrigado pelos comentários.

7:13 AM  

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