A terceira caixa de David Bowie
No final de 2015 - portanto, antes do falecimento de David Bowie - teve início uma série de relançamentos da obra do músico inglês pela Parlophone. Em vinil e CD, os álbuns de Bowie foram reeditados em caixas por período, depois disponibilizados de forma avulsa (mas sem o livro e os álbuns especiais do pacote completo). O primeiro box chamou-se Five Years, cobrindo de 1969 a 1973 (minha fase preferida, com ênfase em glam rock). O segundo intitulou-se Who Can I Be Now, abrangendo de 1974 (o último suspiro do Bowie roqueiro com Diamond Dogs) a 1976 (seguindo-se uma surpreendente guinada de estilo para a soul music).
Pois agora é a vez do terceiro volume, de nome A New Career in a New Town, que vai de 1977 a 1982. Como nos outros dois, o título de uma música de Bowie foi escolhido para batizar o conjunto de álbuns relançados. O cantor passou a maior parte do período em Berlin, por isso "uma nova carreira em uma nova cidade". Isso já deixa os fãs curiosos, fazendo especulações de como se chamará a próxima caixa. Muitos apostam em "Dancing With the Big Boys", outros em "Loving the Alien" ou talvez "Shinin' Star".
"Heroes" (as aspas fazem parte do título), também de 1977, segue uma fórmula semelhante à de seu antecessor, com várias faixas instrumentais ou quase ocupando boa parte do lado B. A faixa-título tornou-se um dos cartões de visita de Bowie, aquela composição que ele sempre cantava mesmo quando fazia uma participação rápida em shows coletivos. No CD da caixa, a música contém uma mudança abrupta de equalização na metade que está gerando reclamações dos compradores, pela "queda de volume". A gravadora já tentou se justificar, dizendo que está assim na fita matriz e eles apenas tentaram atenuar a falha. Quanto ao álbum, há quem o considere um dos melhores de David Bowie. Eu nunca consegui captá-lo. Mesmo a faixa-título, prefiro na versão ao vivo de Stage, que será comentado adiante. Gosto da sonoridade disco music de "The Secret Life of Arabia" (que é a única que o próprio Bowie não curtia, dizendo que foi incluída às pressas para completar o LP) e do clima de filme de terror de "Sense of Doubt".
Uma curiosidade: a faixa-título teve versões em alemão e francês, em edições longas e curtas, e esta é a primeira vez em que todas (em especial, a gravação em francês) estão saindo em CD.
Como já era de se esperar, pelo que tinha sido feito com David Live na segunda caixa, o álbum duplo ao vivo Stage foi incluído em duas versões: a original da RCA de 1978 e a remixagem de 2005, com as músicas na ordem em que foram apresentadas no show. A segunda era a configuração ideal desse excelente registro da turnê de Bowie na época. Desde seu lançamento original, Stage já teve o acréscimo de cinco músicas em relançamentos posteriores: "Alabama Song" (versão da Rykodisc de 1991), "Be My Wife", "Stay" (ambas da edição de 2005) e agora, nesta caixa, "The Jean Genie" e "Suffragette City". As faixas originais do álbum Ziggy Stardust (1972) foram descaracterizadas pelos arranjos com muito teclado e pouca guitarra, mas as demais estão primorosas. Aqui está a versão definitiva de "Heroes" e releituras interessantes de 'What in the World", "Breaking Glass" e a instrumental "Speed of Life", num andamento acelerado, com mais swing.
Quando se soube que o pacote conteria uma versão do álbum Lodger, de 1979, remixada por Tony Visconti (além da mixagem original), a primeira impressão foi de que era algo arbitrário e sem necessidade, apenas para criar uma novidade. Pois, em um dos textos do livreto, Tony explica que, na época, tiveram que usar o Estúdio D de Record Plant para mixar o álbum e o equipamento em questão não era o melhor para a tarefa. Ele e Bowie não ficaram satisfeitos com o resultado e sempre sonhavam em fazer uma nova e definitiva mixagem do álbum. Pois agora ela está aqui. E Bowie acompanhou e aprovou o começo do processo, escutando os primeiros resultados. Quanto ao disco em si, é considerado o último da chamada "trilogia de Berlim", formada por Low, "Heroes" e Lodger. Nem tudo foi gravado na Alemanha, mas é uma referência ao período em que Bowie morou lá e a influência que o país teve em seu trabalho. Em Lodger, descartam-se os temas instrumentais e Bowie começa, aos poucos, a flertar novamente com o rock. Mas a volta do roqueiro só aconteceria de forma plena no álbum seguinte.
Scary Monsters (and Super Creeps), de 1980, foi um disco tão marcante que, a partir daí, sempre que a crítica quisesse elogiar um novo álbum de Bowie, apelava para o clichê: "seu melhor trabalho desde Scary Monsters". Para quem era fã dos velhos tempos de Ziggy Stardust e Aladdin Sane, foi gratificante ouvir novamente David Bowie mandando ver o bom e verdadeiro rock and roll, agora em sintonia com a chamada new wave. "Ashes to Ashes" rodou bastante nas rádios brasileiras. Em "Scream Like a Baby", ouvem-se acordes pesados como havia tempos não apareciam numa gravação de Bowie (depois ficou-se sabendo que a composição era original de 1973, o que explica a sensação de volta à antiga forma). "Scary Monsters" e "Because You're Young" também são rocks incendiários. Ao adentrar a nova década reafirmando sua posição de roqueiro-mor de sua geração (inclusive resgatando a imagem glitter no visual da capa), Bowie deixou a todos curiosos sobre o que viria nos anos seguintes. Ninguém poderia imaginar a nova guinada de estilo em 1983, que revitalizaria como nunca sua popularidade. Mas isso é assunto para a próxima caixa.
Scary Monsters foi o último álbum de Bowie para a RCA, mas não o último disco. Em 1982 ele lançou a trilha sonora da peça Baal, de Bertold Brecht, que ele estrelou numa encenação para a BBC. Com apenas cinco faixas, o disco foi considerado um EP (Extended Player), confeccionado em edições de 10 e 12 polegadas. Nunca teve um relançamento só dele em CD, mas agora aparece na íntegra na coletânea de raridades da caixa, Re:Call 3 (as faixas "Baal's Hymn" e "The Drowned Girl" já tinham saído no box de quatro CDs Sound+Vision). Bowie canta as músicas com sua voz crua, sem qualquer impostação. Outras faixas raras da caixa incluem versões mais curtas de single (ou mais longa, no caso de "Breaking Glass"), o tema instrumental "Crystal Japan", "Under Pressure" com o Queen e o dueto de Natal com Bing Crosby, "Peace on Earth/Little Drummer Boy". Como nos dois volumes anteriores, ficaram de fora faixas-bônus dos relançamentos da Rykodisc, como "Some Are", "Abdulmajid", "I Pray Olé" e a regravação de 1988 de "Look Back in Anger". Ganha-se de um lado, perde-se de outro.
O livreto de capa dura que acompanha o lançamento contém fotos promocionais diversas, reproduções miniaturizadas das capas (inclusive dos singles), críticas e matérias publicadas nas épocas respectivas e textos atuais do produtor Tony Visconti explicando como foram gravados os álbuns de estúdio. Uma curiosidade que é ignorada - por razões contratuais, talvez? - é que várias dessas músicas foram utilizadas no filme "Christiane F.", onde inclusive Bowie faz uma ponta numa cena de show. Desde que ouvi Low e depois "Heroes", sempre achei que as gravações instrumentais daqueles LPs seriam perfeitas para uma trilha sonora. Pois isso foi confirmado na prática.
Leia também:
David Bowie da fase glam rock
A caixa dois de David Bowie
Pois agora é a vez do terceiro volume, de nome A New Career in a New Town, que vai de 1977 a 1982. Como nos outros dois, o título de uma música de Bowie foi escolhido para batizar o conjunto de álbuns relançados. O cantor passou a maior parte do período em Berlin, por isso "uma nova carreira em uma nova cidade". Isso já deixa os fãs curiosos, fazendo especulações de como se chamará a próxima caixa. Muitos apostam em "Dancing With the Big Boys", outros em "Loving the Alien" ou talvez "Shinin' Star".
Esta é talvez a fase mais experimental e complexa da obra de Bowie. Ela começa com o genial Low (1977), que mais uma vez tomou os fãs de surpresa com um estilo totalmente novo e inesperado. Com a colaboração de Brian Eno e produção de Tony Visconti, o álbum tem várias faixas instrumentais ou com pouquíssimos vocais. As quatro do lado B do vinil original são longas e "ambientais". O estímulo para Bowie criar esse tipo de música deve ter vindo de sua suposição (errônea) de que ele seria o responsável pela trilha sonora de "O Homem Que Caiu na Terra", estrelado por ele. "Subterraneans" foi composta para o filme, mas dizem que ele fez mais temas igualmente não aproveitados. Essa coleção de faixas confusas e pouco comerciais apavorou os executivos da RCA. Mas deu tudo certo no final. O público entendeu, a crítica adorou e "Sound and Vision" foi a escolha perfeita como single, por ser dançante, com letra e na duração certa para tocar no rádio.
Uma curiosidade: a faixa-título teve versões em alemão e francês, em edições longas e curtas, e esta é a primeira vez em que todas (em especial, a gravação em francês) estão saindo em CD.
Como já era de se esperar, pelo que tinha sido feito com David Live na segunda caixa, o álbum duplo ao vivo Stage foi incluído em duas versões: a original da RCA de 1978 e a remixagem de 2005, com as músicas na ordem em que foram apresentadas no show. A segunda era a configuração ideal desse excelente registro da turnê de Bowie na época. Desde seu lançamento original, Stage já teve o acréscimo de cinco músicas em relançamentos posteriores: "Alabama Song" (versão da Rykodisc de 1991), "Be My Wife", "Stay" (ambas da edição de 2005) e agora, nesta caixa, "The Jean Genie" e "Suffragette City". As faixas originais do álbum Ziggy Stardust (1972) foram descaracterizadas pelos arranjos com muito teclado e pouca guitarra, mas as demais estão primorosas. Aqui está a versão definitiva de "Heroes" e releituras interessantes de 'What in the World", "Breaking Glass" e a instrumental "Speed of Life", num andamento acelerado, com mais swing.
Quando se soube que o pacote conteria uma versão do álbum Lodger, de 1979, remixada por Tony Visconti (além da mixagem original), a primeira impressão foi de que era algo arbitrário e sem necessidade, apenas para criar uma novidade. Pois, em um dos textos do livreto, Tony explica que, na época, tiveram que usar o Estúdio D de Record Plant para mixar o álbum e o equipamento em questão não era o melhor para a tarefa. Ele e Bowie não ficaram satisfeitos com o resultado e sempre sonhavam em fazer uma nova e definitiva mixagem do álbum. Pois agora ela está aqui. E Bowie acompanhou e aprovou o começo do processo, escutando os primeiros resultados. Quanto ao disco em si, é considerado o último da chamada "trilogia de Berlim", formada por Low, "Heroes" e Lodger. Nem tudo foi gravado na Alemanha, mas é uma referência ao período em que Bowie morou lá e a influência que o país teve em seu trabalho. Em Lodger, descartam-se os temas instrumentais e Bowie começa, aos poucos, a flertar novamente com o rock. Mas a volta do roqueiro só aconteceria de forma plena no álbum seguinte.
Scary Monsters (and Super Creeps), de 1980, foi um disco tão marcante que, a partir daí, sempre que a crítica quisesse elogiar um novo álbum de Bowie, apelava para o clichê: "seu melhor trabalho desde Scary Monsters". Para quem era fã dos velhos tempos de Ziggy Stardust e Aladdin Sane, foi gratificante ouvir novamente David Bowie mandando ver o bom e verdadeiro rock and roll, agora em sintonia com a chamada new wave. "Ashes to Ashes" rodou bastante nas rádios brasileiras. Em "Scream Like a Baby", ouvem-se acordes pesados como havia tempos não apareciam numa gravação de Bowie (depois ficou-se sabendo que a composição era original de 1973, o que explica a sensação de volta à antiga forma). "Scary Monsters" e "Because You're Young" também são rocks incendiários. Ao adentrar a nova década reafirmando sua posição de roqueiro-mor de sua geração (inclusive resgatando a imagem glitter no visual da capa), Bowie deixou a todos curiosos sobre o que viria nos anos seguintes. Ninguém poderia imaginar a nova guinada de estilo em 1983, que revitalizaria como nunca sua popularidade. Mas isso é assunto para a próxima caixa.
Scary Monsters foi o último álbum de Bowie para a RCA, mas não o último disco. Em 1982 ele lançou a trilha sonora da peça Baal, de Bertold Brecht, que ele estrelou numa encenação para a BBC. Com apenas cinco faixas, o disco foi considerado um EP (Extended Player), confeccionado em edições de 10 e 12 polegadas. Nunca teve um relançamento só dele em CD, mas agora aparece na íntegra na coletânea de raridades da caixa, Re:Call 3 (as faixas "Baal's Hymn" e "The Drowned Girl" já tinham saído no box de quatro CDs Sound+Vision). Bowie canta as músicas com sua voz crua, sem qualquer impostação. Outras faixas raras da caixa incluem versões mais curtas de single (ou mais longa, no caso de "Breaking Glass"), o tema instrumental "Crystal Japan", "Under Pressure" com o Queen e o dueto de Natal com Bing Crosby, "Peace on Earth/Little Drummer Boy". Como nos dois volumes anteriores, ficaram de fora faixas-bônus dos relançamentos da Rykodisc, como "Some Are", "Abdulmajid", "I Pray Olé" e a regravação de 1988 de "Look Back in Anger". Ganha-se de um lado, perde-se de outro.
O livreto de capa dura que acompanha o lançamento contém fotos promocionais diversas, reproduções miniaturizadas das capas (inclusive dos singles), críticas e matérias publicadas nas épocas respectivas e textos atuais do produtor Tony Visconti explicando como foram gravados os álbuns de estúdio. Uma curiosidade que é ignorada - por razões contratuais, talvez? - é que várias dessas músicas foram utilizadas no filme "Christiane F.", onde inclusive Bowie faz uma ponta numa cena de show. Desde que ouvi Low e depois "Heroes", sempre achei que as gravações instrumentais daqueles LPs seriam perfeitas para uma trilha sonora. Pois isso foi confirmado na prática.
Leia também:
David Bowie da fase glam rock
A caixa dois de David Bowie
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home