terça-feira, julho 05, 2005

O Ouvinte Casual

(Publicado originalmente no International Magazine nº 53 - não me perguntem em que ano.)

Todos os fanáticos por música, especialmente os discófilos, têm uma história parecida. Vivem sendo criticados pelo excesso de discos que compram. Primeiro, pelos pais. Depois, pela esposa. Futuramente, quem sabe, pelos filhos. E vocês, que já nasceram na era do CD, têm a vantagem de poder esconder cada nova compra em qualquer espaço onde caibam cinco polegadas de diâmetro: uma bolsa, uma capanga ou até o bolso. Até o final dos anos 80, não existia essa moleza. Não havia como chegar em casa com doze polegadas em baixo do braço e não ser notado. Aí, a crítica era inevitável, mesmo que não-verbal. Bastava um olhar fulminante para dizer tudo: "Ele comprou mais um disco..."

No entanto, nem todos são assim. Na verdade, somos minoria. O mercado está tomado pelo Ouvinte Casual. Sim, aquele sujeito comum que gosta de música sem ser fanático. Compra menos de um CD por mês, em média. Não lê International Magazine, não lê "Ice", não consulta a Internet, não troca informações com amigos e, em geral, só conhece os CDs que a rádio ou a televisão literalmente lhe esfrega no ouvido. Por um lado, ele está certo. É uma pessoa ponderada, que sabe administrar seus gastos. Não torra o seu orçamento em supérfluo. Contabiliza ajuizadamente suas despesas, de forma que nunca lhe falta dinheiro para o cinema, o bar, a noite, as roupas. Mas que é chato ter que agüentar o Ouvinte Casual, isso é. Porque o comércio trabalha praticamente só para ele.

Em geral, o Ouvinte Casual é adorado por vendedores. Ele se contenta com pouco e nunca procura nada complicado. É aquele indivíduo que pede um CD que está esparramado por toda a loja, só não vê quem não quer. O vendedor, feliz por poder ajudar, alcança o disco ao Ouvinte Casual, que o compra e sai dali pensando: "Adoro essa loja porque eles sempre têm o que eu quero!" Mas não só nas lojas de disco o Ouvinte Casual se sente em casa. Nas lojas de móveis, também. Sabe aquelas prateleiras com compartimento para, no máximo, 40 CDs? Ou aquelas torrezinhas que ficam no meio da sala, sem proteção nenhuma, também com o objetivo de armazenar algumas dezenas de discos? Para o Ouvinte Casual, elas são mais do que suficientes. Ele realmente coloca toda a sua CDteca ali. O Ouvinte Casual é o único que consegue comprar uma estante para o seu som sem precisar fazer sob medida.

O Ouvinte Casual geralmente é beatlemaníaco. Afinal, quem não gosta de Beatles? Só que ele nunca ouviu falar de disco pirata. Para ele, todas as faixas da série "Anthology", sem exceção, eram desconhecidas. E, cá entre nós, que saco agüentar os beatlemaníacos casuais comentando animadamente faixas manjadíssimas como "Three Cool Cats" ("é aquela do Roberto Carlos", numa alusão à semelhança com "Negro Gato"), "How Do You Do It", "If You've Got Troubles" e "What's The New Mary Jane" ("que música esquisita") como se fossem altas novidades. Agora vai ser a mesma coisa com a "Anthology" de John Lennon. O Ouvinte Casual tomou conhecimento do CD "In My Life", de George Martin, depois da entrevista no Fantástico. E esta aconteceu mesmo: um Ouvinte Casual beirando os 50 anos entrou em uma locadora de vídeo comentando que tinha conseguido o último CD dos Beatles que faltava para a sua coleção, "um disco importado que não saiu no Brasil". Quando espichei o olho, vi que era um pirata italiano daqueles bravos, de capa desenhada, dos menos valorizados. Queria só ver a cara do sujeito quando ouviu o disco, em casa.

Se o Ouvinte Casual gosta de Jovem Guarda, não toma conhecimento das melhores coletâneas da época. Se diz que tem a coleção completa de Roberto Carlos, é porque nem sabe da existência do Primeiro LP, "Louco por Você". Acima de tudo, o Ouvinte Casual é a vítima preferida das coletâneas enganosas, aquelas que incluem gravações obscuras como se fossem "Grandes Sucessos". Exemplos: compilação dos Bee Gees da fase australiana (pré-67) com foto do grupo já maduro, com Barry barbudo e Maurice careca. CD de David Bowie do período não-roqueiro (1967-68) com foto do visual Ziggy (73). Disco com faixas de James Taylor e Carole King para os menos atentos não perceberem que é dela e não dele a gravação de "You've Got a Friend" que foi incluída. CDs com regravações ou versões ao vivo, sem que esses detalhes sejam explicitados na capa. Quem compra tudo isso? O Ouvinte Casual, ora!

Agora um conselho de amigo: não deixe o Ouvinte Casual ter acesso à sua coleção de discos. Isso nunca dá certo. Primeiro, ele ficará estarrecido com a quantidade. E o bombardeará com as perguntas inevitáveis: "Como você conseguiu comprar tanto disco?" "Quanto você gasta por mês em disco?" "Quantos discos você tem, já contou?" (Aí você pensa em responder: "Já, meu amigo, passei um fim-de-semana inteiro fazendo isso: 323, 324, 325... 452, 453, 454... 546, 547, 548...") Num segundo momento, ele irá examinar alguns títulos, ao acaso. E terá novamente algumas surpresas, pois – acredite se quiser – o Ouvinte Casual pensa que conhece tudo em termos de CD. Então virão mais indagações incômodas: "Que disco é esse que eu nunca vi em lugar nenhum? Onde você o comprou? Onde posso consegui-lo?" Essa reação não se restringirá necessariamente a piratas e importados. Há discos de fabricação nacional que simplesmente escapam ao olhar desatento do Ouvinte Casual. Não estranhe se ele vier com frases tipo "que disco é esse da Rita Lee que eu nunca vi" ou "eu não sabia que este LP do Beto Guedes tinha sido relançado em CD".

Mas o pior está por vir. No final da história, o Ouvinte Casual vai lhe pedir CDs emprestados. Aí, prepare-se para enfrentar o doloroso dilema: perder os discos ou perder o amigo? Só os colecionadores sabem o quanto essa decisão é difícil. Não pense que ele vai se lembrar de devolver os CDs. Para ele, CDs são todos iguais: baratos e fáceis de encontrar. Ele nem acreditaria se você dissesse o quanto pagou por certos itens do seu acervo. Claro que existe a opção de, no caso de ele não se manifestar, você pegar o telefone e cobrar a devolução. Mas essa alternativa só adia o fim da amizade. Ele vai pensar: "Que cara mesquinho, incomodando por causa de uns míseros CDs!" Logo, a melhor forma de proceder é manter o Ouvinte Casual a uma distância segura. Ele é feliz assim, comprando o que vê no Fantástico.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Cara, os exemplos que vc deu está longe de ser um ouvinte casual.!

5:28 PM  

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